sábado, 17 de janeiro de 2009

O Barco

Cheguei ontem a Manaus após pouco mais de três dias de navegação pelo Rio Madeira e pelo Amazonas. A viagem correu tranquila, sem contratempos, excetuando-se a superlotação do barco. Mais de 200 pessoas num espaço diminuto, com capacidade para não mais que 150, apesar de a placa dependurada na embarcação afirmar que a capacidade era de 180 passageiros.

Um mundo confinado num espaço de pouco mais de 30 metros de comprimento por 8 de altura. Velhos, crianças, adultos, estrangeiros (um japonês, dois suíços e uma belga) misturados e convivendo juntos por horas e horas, o que tornou a experiência muito rica. No começo, todos recolhidos e discretos. Ao fim da viagem a privacidade encontrava-se fora da órbita terrestre e aquilo se assemelhava a uma excursão colegial.

Conheci pessoas dos mais variados quilates, cada qual com seu propósito. A maioria fez a viagem de barco por necessidade (para eles, o preço do avião é proibitivo) e apenas alguns gatos pingados por turismo.

O cotidiano do barco era assim: acordávamos muito cedo (nós, que estávamos na área das redes) devido à claridade e ao barulho do motor. Tomávamos o café e matávamos o tempo até o almoço. Alguns dormiam, outros bebiam, outros miravam as margens que introduziam a floresta. Muitos liam ou escutavam música. Eu fazia de tudo um pouco. As crianças não paravam, uma correria desenfreada pelo barco, o que tornava difícil a realização de tarefas que exigiam alguma concentração.

Após o almoço, a siesta era obrigatória. Acordava por volta das 3h e matava o tempo até o jantar. Haja assunto para conversas e letras para se ler.

A noite no meio da floresta é encantadora, pois o céu se revela sem o véu que as luzes da cidade aplicam-lhe inadivertidamente. Ambiente perfeito para pensar um pouco, refletir sobre nós mesmos. A noite foi o que mais me agradou na viagem.

Animais selvagens não foram avistados, apenas alguns botos. Mesmo com a mata abraçando as margens do Rio, os animais só se apresentavam ao tardar da Lua, o que impossibilitava sua visualização.

Interessante também foi conhecer algumas técnicas de navegação em grandes cursos d´água. A busca pelos canais profundos, a necessidade de se navegar próximo à margem que apresenta barrancos e não às que guardam uma topografia baixa, isso devido à profundidade, a leitura das águas pelos práticos (também conhecidos como timoneiros), a sintonia necessária entre a tripulação, o trabalho do farol na navegação noturna, a tensão proporcionada pelo encontro com balsas e outros barcos.

Bem, eu fui obrigado a dormir no chão. Quando embarquei a área das redes, no segundo piso, já estava completamente tomada, não havia espaço sequer para um palito de fósforo. Sorte que levo comigo isolante térmico e saco de dormir, o que foi a salvação da lavoura. Apesar do calor predominar durante o dia, à noite o frio pega e o vento sopra sem restrições. Havia comprado uma rede que foi utilizada apenas como travesseiro.

As condições do barco eram precárias. Dois banheiros para atender a toda essa gente. Vocês imaginam a aventura e o esforço demandados para banhar-se e descarregar a caçamba. A água do banho era retirada do Rio, e era barrenta. A fila na hora das refeições assemelhava-se à dos bancos em dia de pagamento do INSS, um exercício de paciência. A comida, apenas razoável. Ao menos a cerveja no bar era gelada (o terceiro piso do barco era um bar). Músicas de gosto duvidoso tilintavam incessantemente. Pela manhã, a paz de Jesus, à noite, o pecado do forró.

Confesso que a paisagem, num primeiro momento encantadora, tornou-se monótona, repetitiva. Além disso, as águas marrons do Madeira definitivamente não são um grande atrativo para os olhos. Mas o cenário muda de figura quando o barco alcança o Amazonas (vide fotos).

Porém, tudo isso, ao final da viagem, acabou relegado ao terreno das irrelevâncias.

O grupo ao qual fiquei mais próximo aglutinava uma miríade interessantíssima de personalidades. Apresento-lhes Lindenberg, cerca de 40 anos, amazonense e manauara, hoje crente, mas que começou a vida como ajudante de hippie, segundo contou. Não me perguntem qual o ofício de um ajudante de hippie, porque sequer sei responder o que um hippie faz. Talvez suas tarefas compreendiam entortar araminhos, catar miçangas e bolar o fuminho. Lindenberg retorna à sua cidade natal após anos de ausência. Morava no Acre, em Rio Branco, e o fim do casamento foi o motivo para a volta. Novamente me deparo com um sujeito falador, daqueles que gostam de proferir palavras sobre tudo e todos. Mas no fundo é um bom caráter. Tanto que se prontificou a nos apresentar Manaus, o que considerei um ato muito simpático.

Conheci também Silas, gaúcho, 41 anos, filho de um pastor luterano. O nobre morou em Manaus em 2001 e novamente pisa na cidade que ama, como ele mesmo declarou. Veio para concluir o curso de direito, o que demandará ainda dois anos. O cara é gente finíssima, astral, inteligente, astuto e um grande companheiro. Ele é daqueles tipos que inspiram confiança, tanto que deixaria uma fortuna aos seus cuidados com a plena certeza de que jamais seria enganado. Um pouco sistemático, mas afinal, qual gaúcho não é? Conversei muito com ele, principalmente sobre política, religião e o marco legal brasileiro. Aliás, acerca desse último assunto, mais ouvi que opinei. Um cara que vale a pena conhecer.

Arrastamos conosco ainda Curió, um japonês muito doido, chef de cozinha, que está viajando pela América Latina. Lógico que seu nome é impronunciável, assim, como o final se assemelhava a Curió, o apelidamos com essa alcunha. Tenho certeza de que ele ainda não sabe o que anda fazendo por aqui. Disse que seu objetivo é alcançar o Monte Roraima, fronteira com a Venezuela. Pensava que Roraima ficava na Venezuela. Tenho minhas dúvidas sobre o êxito de sua jornada, mas torço para que dê tudo certo com ele.


Há ainda Aline, gaúcha, 33 anos, escritora, editora e muito gente fina. Aventureira, estava na Amazônia em novembro com o intuito de realizar pesquisas para seu próximo livro. Voltou agora para visitar uma comunidade chamada São Gabriel da Cachoeira, localizada nos confins da floresta. É uma vila composta predominantemente por índios, próxima à região conhecida como Cabeça do Cachorro (pesquisem no Google e saibam mais sobre esse lugar, vale a pena). Acabei sendo agraciado. Ela ficou interessada pela mineirinho, e eu por ela, assim iniciamos uma trama que fez a viagem ficar muito melhor. Uma mulher muito inteligente, mas que ainda precisa ser apresentada a muitas realidades. Ontem, eu, ela e Lindenberg fomos a um boteco, o mais tradicional de Manaus, o Bica, ponto de encontro das cabeças irrequietas do Norte. No passado, era o local onde artistas das mais variadas estirpes se reuniam. Hoje, atrai turistas e locais, além dos remanescentes da época de ouro. Aline ficou encantada com o lugar, nunca tinha visitado um boteco de verdade. Não sei muito sobre ela, mas creio ser de família abastada. Assim, involuntariamente, acredito ter sido privada de certas experiências essenciais à vida dos homens. Mas hei de mostrar-lhe tudo que esteja ao meu alcance. Passamos a dividir um quarto de hotel, unindo o útil ao muito agradável. Ela convidou-me para ir a São Gabriel da Cachoeira. Não sei não, mas acho que Belém ficará para trás e partirei para a Amazônia profunda com a distinta e carinhosa escritora.

Travei ainda dezenas de outras conversas, como a que tive com o velho que certo dia foi a uma reunião da União do Vegetal, tomou ayahuasca e se viu perseguido por demônios; com o professor de história fanático pelo Lula; com o mineiro que veio para Manaus para recomeçar a vida; e assim outras tantas, que demandariam um esforço sobrehumano para escrevê-las.

Ao final, tudo deu certo e agora começo a desbravar Manaus. Nos próximos posts inicio o relato sobre a maior cidade do Norte do país, uma metrópole cravada no meio da selva que não possui estradas de acesso e que encanta pela receptividade de seu povo. Hasta!

Um comentário:

Sandro Almeida Santos disse...

e ai foca navegante!!!

Estou aqui curtindo uma "inveja positiva" dessa sua aventura! Viva o Brasil lado B!!!

Se liga pra não bancar o Homer...

um abração!!!