quarta-feira, 27 de dezembro de 2006

O Sonho do Insone


Quão abafado está este cômodo. Irrespirável. Quatro paredes úmidas e surradas, que quase não guardam mais seu verde original, nos cercam hermeticamente. Uma luz tuberculosa desvenda meu rosto linchado. Não avisto porta alguma desta posição, com certeza ela está atrás da cadeira onde me encontro de pulsos e calcanhares atados.


Não importa, já não posso mesmo ver muita coisa. Meus olhos distinguem apenas sombras em movimento, resultado do extraordinário inchaço em que se encontram. O doce gosto de sangue encharca minha boca e alguns de meus dentes bóiam em seu leito vermelho. Não descreverei em que estado estão minhas pernas ou meus braços ou meus dedos. Seria demasiado enfadonho listar tantas chagas. E confesso ser interessante sentir minhas costelas espatifadas perfurando meus pulmões a cada movimento respiratório. Sempre soube que o tabaco não seria o cruzado de meus alvéolos.

A dor já não me aflige mais. Não sei ao certo há quantos dias estou aqui, mas logo nas primeiras mágoas provocadas pelo acerto de contas meu corpo se encarregou de poupar-me. Creio possuir altos índices de adrenalina ou endorfina ou qualquer outra “ina” produzida pelo organismo aveludando meu cérebro.

Por isso mesmo o mais ardente dos flagelos é a música “What a Wonderful World”, de Louis Armstrong, que emana incessantemente de um som estéreo localizado num canto da câmara. Descobriram que nunca suportei essa música devido aos inúmeros imitadores que a usam em suas apresentações. Sempre invejei os que não escutam. Estes estão à salvo!

Dez justiceiros respiram de maneira tranqüila ao meu redor. Entretêm-se com as cinzas de seus cigarros, com os estalos provocados pelo manuseio de suas armas e, principalmente, com o meu espancamento, que espalha gritos e risadas pelo enevoado ar do lugar. Fazem um revezamento, e de par em par dispõem de um determinado tempo para a diversão. Eles são bem criativos e guardam uma boa sorte de ataques que vão desde socos, pontapés e cortes até pauladas nos joelhos e queimaduras na sola do pé. Demonstrando nobre gentileza, oferecem-me cerca de uma hora de descanso após cada sessão.

De novo. Mais uma pancada acaba de entorpecer-me. Estou completamente grogue. Que maravilhosa sensação a de sentir o mundo caminhando com um pouco mais de vagar. Enfim livrei-me do ritmo frenético desse século que retrocede.

Neste torpor iracundo um turbilhão de pensamentos desconexos invade minha cabeça. Jesus teria desenvolvido uma unha encravada devido as suas intermináveis caminhadas? Quantos falsos sorrisos foram-me oferecidos até hoje? È possível colar a porcelana quebrada do coração com a saliva alheia? O peixe fisgado se ressente de sua gula? Qual a cor de minha preferência: a preta ou a branca? Devo morrer vivendo ou viver morrendo? Por que não fugi enquanto ainda tinha tempo? Quantos litros de água se perderam no gotejar eterno daquela torneira? Como seria o sexo dos extraterrestres?

Descubro que, ao contrário do que dizem, a vida não se explica no último suspiro.

Escuto a decisão de um deles. Um revólver marca minha nuca. Preferiria um tiro no céu da boca, que atravessaria retilíneo meu crânio. Milésimos de segundo antes de a pólvora queimar minha pele, um último pensamento me confere otimismo: as baratas sempre morrem de pernas para o ar.

Nosso País


A rotina é miserável. Atados em um nó social, não nos movemos. Progressivamente nos acomodamos com a normalidade absurda, transformamo-nos em cúmplices. E não há horizontes mais iluminados à vista.

O nosso Estado é um assassino. Mata direta e indiretamente.

O nosso Estado mata através de seu braço coercitivo e que possui a legitimação do uso de violência, a polícia. Infiltrados nos quartéis existem grupos de extermínio, há os conluios com homicidas e traficantes, onde a liberdade é posta a venda, torturas e truculências que geram mais fúria que disciplina, execuções sumárias de suspeitos, às vezes culpados, muitas vezes inocentes, tiros e mais tiros entre escassas palavras.

O nosso Estado mata quando não mostra nenhuma disposição para superar o descaso quanto ao essencial serviço de saúde pública. Cidadãos morrem em corredores de hospitais, filas de atendimento, morrem por falta de remédios que não têm condições de comprar e que deveriam ser fornecidos pelo governo, morrem sem sequer ter acesso a algum tipo de atendimento público de saúde.

O nosso Estado mata quando permite que a população circule em vias de transporte tão precárias e inseguras como as nossas. Talvez em números absolutos, o número de mortos em acidentes rodoviários não cause mais espanto na opinião pública. Mas pensemos como seria perder um ente próximo em conseqüência de um mísero buraco. Há recolhimento de impostos para manutenção de estradas, e se estas se encontram em estado de degradação absoluta, sabemos perfeitamente quem é o responsável.

O nosso Estado mata quando permite que o patrimônio público seja pilhado por repugnantes insetos sorverdores. Recursos essenciais ao povo que pagam refeições em restaurantes da grã-realeza, que compram máquinas automobilísticas oníricas, viagens recheadas de azuis-turquesa, palacetes esplendorosos, tecnologias ofuscantes, êxtases vazios.

O nosso Estado mata quando se mostra ineficiente na conservação de nosso ambiente, não só o natural, mas também o urbano. A água vai progressivamente sendo infectada; a massa verde cada vez mais cede espaço à ganância; o ar das cidades é sujo, carregado, intoxicado; aglomerados escancaram a lamúria da pobreza.

E assim, enquanto vários secam pouquíssimos estão vivendo no éden. Paraíso falso, na realidade, mas que agride e espanca os Josés, Joões, Marias e Madalenas e que progressivamente começa a atingir as Lúcias, os Eduardos, as Carlas e os Leandros, a classe que habita as redondezas dos altos postos da pirâmide da vergonha.

Continuaria por vários e vários parágrafos. Mas o que escrevo já foi incessantemente falado e já é enfadonhamente conhecido. Faz parte de nossa vida, do transparente cotidiano.

A desilusão reside aí. Nosso povo canta, lacrimejante, a vitória de um atleta, evoca o hino nacional e dele se apossa, dele se nutre. Retorna ao lar, liga a televisão e observa, enraizado, a caixa negra vomitar chagas de nossa sociedade. A reação é parcimoniosa, um ato de medíocre passividade.

Os jovens buscam tão só as frivolidades, as sensações rápidas e intensas, o mundo de plástico, o estéril, a alucinação coletiva da inércia, o deserto que nos oferece o infinito, o impossível, o ilimitado. Turvam suas mentes e caem em profundo estado de flutuação, sendo posteriormente incorporados e esvaziados.

Quem possui, logicamente não quer a mudança. Quem não possui não reage, por incapacidade ou por covardia ou pelos dois. Quem teria a capacidade de algo mudar, se abstém.

E assim seguimos adiante, pisando em falso, pensando em nada, ruminando a vida. Que beleza é o nosso país.

Os Ingressos e o Brasil



Caros leitores, peço que leiam com atenção as próximas frases. Elas foram retiradas de uma matéria veiculada no jornal Folha de S. Paulo, do dia 19 de setembro. A matéria trata do preço dos ingressos cobrados no show de um renomado artista internacional. Quanto? R$ 300.

Retirei algumas declarações dos entrevistados, que respondiam se consideravam normal, no Brasil, pagarem tamanha quantia por um show. Aí vão algumas respostas:

“O Brasil é assim mesmo. A gente não tem culpa que muitas famílias vivam com R$ 300 por mês. Sei que soa preconceituoso, mas... Acho até bom que seja meio caro; quando a balada é muito barata, eu desconfio. Aqui a gente só vê pessoas mais bonitas e educadas”. Administradora de empresas, 22 anos.

“Sei que R$ 300 não é pouca coisa, mas dinheiro não é problema para mim. Tudo depende da base de comparação. Ao menos uma vez por semana, gasto isso numa balada”. Empresário, 24 anos.

Não foi identificada a profissão deste entrevistado de 23 anos, que disse: “Eu tive sorte de nascer assim. Tenho noção do absurdo, mas prefiro me enquadrar no sistema”. Provavelmente ele não trabalha.

“Se sou mais especial que os outros, não sei. Mas as pessoas não têm culpa de ter grana”. Publicitário, 37 anos.

Sim, o publicitário não tem culpa de ter “grana”. Mas será que ele tem culpa pelos milhões de brasileiros que trabalham de sol a sol para, com sorte, receberem R$ 300 reais por mês?

Sim, dinheiro não é problema para o jovem e próspero empresário. Mas será que é problema para ele um menor, drogado e armado, atravessar sua testa com uma bala de revólver e roubar-lhe míseros R$ 20, R$ 30?

Sim, a administradora tem o direito de pensar que um show ao preço de R$ 300 propicia um ambiente asséptico, pomposo e civilizado. Mas será que quando circula pelas ruas da cidade, quando se depara com a realidade suja, mal educada e feia, R$ 300 reais podem transportá-la instantâneamente para o conforto aveludado de seu mundo?

A melhor. O jovem, parido pelo ventre da riqueza, tem toda a liberdade de se adequar ao sistema. Mas será que ele gostaria de se adequar ao sistema estando do outro lado, lutando não pela chefia de uma multinacional, por um carro importado, por férias em paraísos tropicais, e sim por um prato de comida, uma peça de roupa rasgada, pela sobrevivência?


Partindo destas declarações, deciframos um dos problemas que ancoram este país. Possuímos ricos que vivem dopados, alucinados, construtores de um mundo que reflita a sofisticação européia e o consumo exacerbado americano em solo tupiniquim.

Sentem vergonha de serem brasileiros e consideram os pobres subumanos, selvagens que não merecem mais que as sobras, que devem se curvar ante a imponência obtida através do dinheiro. Vivem sob a égide da hipocrisia, sentando-se no lamaçal com um alvo lençol de seda a proteger suas nádegas.

Estas pessoas serão os futuros comandantes da nação, seja direta ou indiretamente. Eles fazem parte da elite econômica, a condutora da carroça Brasil. Há tempos esta carroça tenta transformar-se em um carro. Creio que dependeremos da tração animal ainda por um longo tempo.

O Vôo



Caminhava de maneira apressada, com a respiração bastante ofegante. Levava um cigarro entre os dedos. Os olhos apresentavam-se arregalados, tensos, atentos a tudo. A boca mantinha-se fechada, porém trêmula.

Desde a manhã notara algo estranho. Um sentimento que lhe afligia, que comprimia-lhe o peito, sufocando-o. Num primeiro momento não deu importância ao fato. Possuía o coração amargurado de um ser miserável e solitário, e assim, imaginou aquele dia como apenas mais melancólico que os outros.

Subitamente sentiu uma dor insuportável em sua espinha dorsal. Tombou, e sua face afundou em uma poça que se formara devido à leve chuva que descia dos céus. Seu corpo iniciou uma série de espasmos, a dor era insuportável e a saliva escorria-lhe pela boca. Seus olhos reviraram-se, e agora miravam a alma.

Já inconsciente, iniciaram-se os delírios. Passou a ver uma série de imagens familiares, como que em um filme. Pequenos trechos de sua vida, que se sucediam, não de maneira aleatória, mas seguindo a linha cronológica de sua existência.

Acompanhou toda sua trajetória, desde os primeiros passos até o momento em que desfaleceu. Uma viajem que possibilitou-o raciocinar sobre o que já fora e no que agora se transformara. Um jovem tranqüilo, amistoso, idealista e amante da vida, tornou-se um adulto sem expectativas, rancoroso, decepcionado, espremido pelo mundo, que se valia de safadezas para viver.

Não mais lhe agradava a presença de pessoas ao seu redor. Se as suportava, era porque necessitava dos tolos para as suas trapaças. Reservava o asco tanto para os maus quanto para os bons, e mais especialmente para os bons, devido à ingenuidade destes. Concluiu que um mínimo de afeto ainda restava na relação com a mãe, nada que o comovesse, todavia.

Antes do ocorrido, pensava ser ele um diferente, que não se deixava iludir pelo mundo, um marginal. Uma pessoa fora do eixo, que era seu próprio todo. Daí o seu desprezo pelo resto. Descobriu que na verdade nunca chegara a ultrapassar a barreira do medíocre, do vazio, das encenações. Uma farsa autêntica.

Compreendeu que sempre teve consciência de suas maquinações, e que devido à covardia, nunca ousou abandoná-las. Esse pensamento atingiu-o de maneira incisiva e mortal. Refletiu que simplesmente era só mais um, e nada que fizesse mudaria essa realidade.

Os delírios se foram. Aos poucos foi recobrando a consciência. Lembrava-se de todo o ocorrido, de todas as imagens que lhe vieram à mente. Levantou-se, caminhou aproximadamente por trezentos metros. Parou e começou a olhar de maneira fixa para a água que corria abaixo. O pensamento encontrava-se distante. Subiu, primeiro o pé direito, seguido pelo esquerdo, pois era destro. Um segundo antes do pulo, esbravejou:

− Enfim, voar!

E pulou, sorrindo. Estava livre do peso da verdade.

sexta-feira, 15 de dezembro de 2006

João


João nasceu na terra batida do morro, em meio às escadarias da miséria e os barracões cujos tetos encobrem a indecência de um país. O menino nunca recebeu muitos cuidados, o pai era inexistente, literalmente, e a mãe desdobrava-se para atender as demandas de toda prole, composta por oito filhos. De idade intermediária, não carregava a responsabilidade dos mais velhos nem os caprichos dispensados aos caçulas.


Só restava a João pensar sobre sua condição de existência. E ele, presenteado com a potência da dúvida e da crítica, passava horas a raciocinar sobre o porquê de seu mundo ser escrito daquele jeito. Não se contentava com explicações rasteiras, fossem elas oferecidas pelos seus ou pelos pensadores do asfalto, que acreditavam analisar soberbamente sua desgraça.

Não, aquilo não ocorria simplesmente pela desigualdade social, pelas forças do mercado globalizado, pela ganância do dinheiro, pela falta de estudo, base familiar ou incompetência pessoal. Não, a sua tristeza era um castigo, concluía o pobre garoto. Um castigo por algo que havia feito em outros tempos, em outra vida na qual conheceu o mundo vestido de ouro, iluminado pelo Sol amarelo e radiante de fartos prazeres.


Era natal, e João, então com quatorze anos, imaginava solitário qual presente iria receber. Mas o próprio sabia que aqueles pensamentos eram pura fantasia, pois nunca havia ganhado nada, nem mesmo um mísero feliz natal. Por que aquele ano havia de ser diferente? Por nada, apenas ansiava aplacar aquela maldita sensação de vazio, de um abandono frio, concreto e dilacerante. Aceitava o castigo que lhe fora imposto, e aceitava calado, resignado, afinal, lutar contra o juízo divino não era tarefa para ele. Não estava sozinho, sempre foi sozinho. A sua única e constante companhia era a solidão.


Ao assistir a televisão João deparava-se com a maravilha de plástico criada pela propaganda. Famílias felizes, crianças saudáveis e sorridentes brincando num gramado esmeralda, todas se esbaldando com seus novos e suculentos brinquedos. Ao fundo, uma imensa casa de arquitetura moderna cuja garagem sempre guardava um belo carro. O efeito do vento, que balançava suave os lisos cabelos daquela gente estranha, também era percebido pelo garoto sujo e largado. Mas o pior eram as propagandas de alimentos, que vomitavam em sua cara uma mesa farta, com assados brilhosos e bebidas elegantes servidas em cintilantes copos de cristal. O menino nem se lembrava da última vez que havia comido carne.


À noite, João decidiu ficar sozinho, até mesmo porque se quisesse a companhia de alguém não a teria. Postou-se numa esquina qualquer de seu morro. Cheirou por completo sua lata de conserva entupida de cola. Sonhou com tudo que sempre desejou, pois havia encontrado a felicidade fugaz do torpor. E assim permaneceu por toda a noite, imaginando quão agradável era a vida no asfalto.

Adormeceu na terra, com seu cabelo desgrenhado, suas unhas sujas e seu rosto desfigurado pela pobreza. Não queria muito, não, buscava apenas um caminho que lhe fornecesse a esperança. Em sua face, ao invés do sorriso vistoso e dos olhos brilhando de alegria das crianças bem nascidas, escorria apenas um delgado e triste fio de lágrima, que representava o oceano de desilusão que era sua existência.