domingo, 30 de dezembro de 2007

Sobre a água, o homem e a Lorenzetti


Que calor infernal. Minha roupa está ensopada, meu cheiro não é dos melhores, o bafo quente do ar me asfixia. Aqui, nesse ônibus lotado, o inferno se assemelha a uma fresca e aprazível cachoeira. Tudo que quero é sair logo dessa lata subumana, chegar a minha casa e me derreter embaixo de uma bela ducha gelada.

Ah sim! Agora sim. O calor de outrora se foi, me sinto bem melhor. Me banho há mais de 10 minutos, a torneira está aberta no nível máximo e a água escorre abundantemente pelo ralo. Ficaria aqui por muito tempo ainda, mas de repente eis que uma vigorosa sensação de culpa arrebate meus pensamentos. Olho aquele largo fio de água e espuma descendo rumo ao esgoto e lembro que milhões de pessoas, quiçá bilhões, estão tão distantes da água quanto eu do estrelato. Movido por essa sensação extremamente desconfortável desligo imediatamente o chuveiro.

Mas que raio de mundo é esse? Nem mesmo um prazer tão comezinho quanto um banho demorado nos é permitido. Conseguimos estragar tudo de maneira tão completa que até mesmo a água, recurso primordial para o surgimento da vida, está em perigo, e bota perigo nisso. Somos tão cruéis que nos valemos da carência de água para alavancar projetos pessoais, como o fazem os políticos brasileiros com suas eternas promessas de exterminar a chaga da seca no sertão. Assim, desligo o chuveiro e não me sinto contento, queria ficar mais tempo debaixo de seus relaxantes pingos. Já que não posso ajudar diretamente, ao menos procuro não atrapalhar mais ainda. Porém, ultimamente, tenho pensado em algo que anda me incomodando.

Meu vizinho segue uma rotina parecida com a minha, e é ele também um usuário do sofrível transporte público. Ele sabe das benesses que um bom banho gera ao fim de um extenuante dia de trabalho. Porém, diferentemente de mim, ele não se importa com quem quer que seja. Não está nem aí. Se existem milhões morrendo com as bocas abertas e secas, não é problema dele, pois não teve nada a ver com a cagada que fizeram com a água. Ele toma seu banho e demora o tempo que achar necessário, minutos ou horas, pouco importa. Ele paga suas contas no fim do mês e assim seu papel está feito.

Ele não se deixa tocar por discursos acalorados, teses ameaçadoras, súplicas dramáticas que alardeiam o fim dos tempos com a destruição do ambiente, mais detalhadamente, da água. O que ele quer é simplesmente relaxar, se livrar da sujeira da rua e sentar-se em sua poltrona com a pele já limpa e os cabelos semimolhados. Começo a achar que esse cara sabe das coisas.

Eu, pelo contrário, fico aqui nessa penitência nula que, além disso, ainda furta meu prazer. Por exemplo, se economizo 20 litros de água por dia, durante, suponhamos, 30 anos, tenho um total economizado de 219.000 litros. Aí, numa bela tarde de terça-feira, vejo na internet que uma indústria acaba de contaminar o Rio Sei Lá o Quê com o despejar de uma grande quantidade de produtos químicos em seu leito, que abastece milhares de pessoas e que demandará anos e anos para ser recuperado. Porra, todo meu esforço foi literalmente (desculpem o trocadilho ordinário) por água abaixo.

Eu sei, eu sei, agora vários já estão pensando: “Mas cada um tem que fazer sua parte, se cada um seguir direito no fim teremos um mundo melhor e blá blá blá”. Bem, começo a achar que pouquíssimos, uma parcela ínfima, cumpre com seus deveres. Acho que a grande maioria tenta apenas convencer o outro a agir de maneira certa, livrando-se assim de sua parcela no trato e desviando-se do sacrifício em nome da continuidade da espécie e do planeta. Sei não viu, mas, sinceramente, cada vez mais tenho isso como verdade. Querem que eu deixe de lado meu tão desejado e merecido banho demorado para que assim possam eles se comprazer com a água cuspida pelo chuveiro.

Por enquanto continuarei a seguir os conselhos vindos de cima, dos especialistas e ambientalistas e mais todos os “istas” que dia sim e outro também nos entopem com explicações e alarmes sobre o futuro. Mas fiquem sabendo que estou de olho. No primeiro sinal que comprove minha teoria deixarei todas essas preocupações de lado para me sentar debaixo de uma Lorenzetti bem gorda, e por lá permanecer até o fim dos tempos. E tenho dito.

Uma História de Natal


Eu nunca estive no sertão, mas mesmo assim vou contar uma história de natal que lá se passou. No meio daquela terra rachada havia uma casinha feia, mal acabada, pequena e desconfortável. Essa casinha, como de praxe, acolhia dez pessoas onde mal cabiam três. Era afeiçoada às celas dos presídios brasileiros, em que até o sono é escravo de uma fila.

Bem, nesse local miserável vivia um menino, que compartilhava sua falta de fortuna com seus irmãos mais velhos e com seus pais, já bastante debilitados pela simples falta de recursos básicos, como água e comida. O nome do menino eu não sei, mas pouco importa, como ele há outros tantos, todos engolidos pelo calor dilacerante do abandono e da falta de atenção por parte das autoridades e da sociedade.

O menino não sabia o que era natal. O seu pai havia acordado com a mãe que nenhum dos filhos conheceria o que se passa nessa data. O motivo é que nem em um milhão de anos eles poderiam comprar presentes, preparar uma farta ceia, trazer ao seu teto amigos para compartilharem o nascimento de Jesus. Não queriam impor aos corações de suas crias um desgosto tão precoce. Porque quando se é criança, por mais rude que seja o ambiente ao redor, ainda é possível viver feliz, na fantasia inerente à mente infantil que consegue digerir até mesmo a fome. Mais tarde é que toma assento a decepção, a noção de sofrimento, o esmagamento da auto-estima. Os filhos tomavam conhecimento do natal, da maneira como o comemoramos, por volta dos 12, 13 anos, idade em que iam até a cidade mais próxima (110 quilômetros) com o pai vender os parcos produtos que ali brotavam. A essa altura já podiam suportar a infelicidade de terem nascidos naquela terra espinhosa.

A família era católica, devota fervorosa dos santos que arrefecem as pauladas da pobreza. No 25 de dezembro apenas rezavam em homenagem ao nascimento de Jesus, com a esperança de que ele atendesse seus chamados e lhes concedesse a tão esperada e afortunada graça divina. Até aquele natal nada ainda havia descido pelas escadarias do Céu, mas continuavam esperando e crendo. Desta feita, amontoavam-se todos em frente a uma imagem de barro e assim demonstravam seu respeito e sua reverência ao sagrado. Nesse dia os únicos que trabalhavam eram o pai e filho mais velho. De certa maneira, esse era o presente do patriarca para sua prole, um dia de descanso.

Mas nesse natal o inesperado aconteceu. Ao longo do trilho que levava até a porta do casebre apontou uma carroça, com vários pacotes como carga e guiada por um ser rechonchudo, vestido de vermelho, acompanhado por mais duas pessoas. O pai encontrava-se àquela hora na lavoura, que ficava próxima da casa, ceifando a plantação seca e miúda. Quando avistou a carroça ficou sem entender o porquê daquela vinda, mas como era o responsável por todos, foi rápido de encontro ao transporte.

A ele foi explicado que aquilo era uma ação de uma Ong, que vinha distribuir presentes às crianças carentes do sertão. O pai mirou bem os olhos do sujeito vestido de Papai Noel e, secamente, disse que não permitiria que seus filhos recebessem presentes. Argumentou que, pior do que seus filhos nunca ganharem nada, seria ganharem daquela vez para depois ficarem novamente desassistidos, alimentando uma esperança tola e inútil de que o natal brilharia novamente por ali.

Após terminar sua fala, o pai percebeu que o caçula encontrava-se próximo da carroça. Ele tinha escutado todo o diálogo. Seus olhos brilhavam como duas centelhas, vendo todos aqueles embrulhos maravilhosos, coloridos, recheados de surpresas que ele nunca poderia imaginar o que eram. Sem a menor comoção, o pai virou-se e disse-lhe, não por maldade, mas por apego à realidade:

- Volta pra dentro agora antes que eu te dê uma sova.

Ele voltou, cabisbaixo, com as lágrimas a inundar seus olhos. O pai despediu-se dos homens da carroça e adentrou o casebre. Puxou o menino pelo braço, colocou-o no colo e falou:

- Num se avexe. Nossa vida é assim. Nós num tem direito de ganhá presente. Deus quis que nós só panhasse os embrulho do chão.

quinta-feira, 29 de novembro de 2007

Numa Manhã de Dezembro


- Bom dia querido.
- Bom dia.
- E então, sente-se melhor?
- Um pouco, um pouco. A cabeça ainda está doendo, mas isso é normal. Desde que eu assumi essas dores não param. Também, já levanto com pepino pra resolver.
- Você que escolheu seguir esse caminho.
- Eu sei, mas diferente do que você diz, eu não tive escolha. Nasci assim, sempre gostei de liderar. E a facilidade com que conseguia impor minhas idéias... O caminho foi natural, não poderia fazer outra coisa.
- Mas isso te desgasta demais Zinho.
- Você vê de perto minha velhice chegar, não é? Não deve ser gostoso ver o marido envelhecer 20 anos em oito, eu entendo. Porém, o meu cargo tem o seu preço, e um deles é a destruição da aparência. O ritmo é intenso. Acordo com uma viagem lá pra fronteira com a Venezuela e durmo com uma reunião aqui no gabinete. Não há corpo que agüente. Mas, no fim, compensa.
- Por que você acha que compensa? Eu sei, você já fez muita coisa que queria, já conseguiu mudar alguns setores muito ruins, recebe elogios por isso, tem uma alta popularidade, e por aí vai. Mas não falta aquilo que você sempre quis, e que percebeu que nunca conseguirá, nem mesmo sendo presidente?
- Ah, Titinha... É claro que não consegui fazer tudo, e nunca conseguirei mesmo. A pressão é muito forte, aqui em cima a gente percebe o quanto o dinheiro é poderoso. É simplesmente tudo, sem ele, sem o seu apoio, esquece! Você não sai do lugar, ou pior, pode retroceder todo um país. E se o que você quer for de encontro com aquilo que o dinheiro busca, não há chance de continuar. Eu tinha boas intenções, queria ajudar cada pessoa, fazer com que todos vivessem tranqüilos. Queria trazer o conhecimento, inovar, criar tecnologia. Queria acabar com os incômodos diários de uma grande cidade, todos, da violência ao trânsito. Mas é impossível, não dá. Eu sou apenas um homem contra um dinossauro mil vezes mais forte, um grande animal que se movimenta sozinho atrás de seu alimento.
- Então, é pó isso que eu pergunto, vale à pena?
- E muito. Com o tempo, quando percebemos claramente a impossibilidade de construir o sonho, nos acostumamos com o jeito das coisas, como a vida é. Eu passei a não me importar mais com isso. Se der pra fazer, faço, se não der, paciência. O mais importante quando se chega até aqui é procurar não ser abatido. Nós somos um alvo preferencial, o número um do clube de tiro da política nacional. Alcançado isso, é necessário também aproveitar um pouco do que o poder tem a oferecer. Afinal, quem está morrendo aqui com toda essa cachoeira de críticas, problemas, pendências, insatisfações, rebeldias e cobranças sou eu. É justo.
- É, mas repito, foi você quem escolheu esse caminho.
- Eu é que repito, não tive escolha. Nasci político, morrerei político. Inclusive, enxergo isso como uma maldição. Se pudesse, levaria uma vida tranqüila, sem maior relevância. A minha consciência é a maior inimiga aqui. Faço o que faço e gosto disso, mas às vezes a consciência chega e ilumina a situação, e me faz sentir enjôo. Percebo que sou o ator principal de uma pornochanchada escrota e medíocre que fode com a vida de milhões.
- Pois é, ainda bem que está acabando.
- Titinha, uma maldição nunca tem fim. Ou você acha que quando eu sair daqui a política saltará de minha vida assim, de repente, num passe de mágica. Vou voltar a dormir aqui, nesse belo e confortável palácio. Não me importa mais os erros e frustrações. Com minha consciência eu em entendo. Afinal, nunca encontrarei camas tão macias quanto as que o poder tem a oferecer.

sábado, 24 de novembro de 2007

Dêem uma olhada nisso. Samba e blues. 10!

http://www.youtube.com/watch?v=X7zv-q6SVz0


Escutem, escutem com atenção. Certa vez dois sujeitos legais, um com aquele tipo bacana, boa vida (não falo aqui de dinheiro, especificamente), o outro muito doidão e triste, mas que também devia ser bacana e boa vida, resolveram trabalhar juntos. Aí, eles fizeram isso aqui ó: UUUUUUUUUUUUUUUAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA!

Escutem, escutem com atenção. Obrigado.


JOHN LEE HOOKER AND MILES DAVIS: THE HOT SPOT.
http://bluesejazz.blogspot.com/. Nesse blog tem disponível, além de várias outras coisas fodas, fodas demais, Nossa Senhora!

sexta-feira, 28 de setembro de 2007

Pesemos sobre nós - Um texto sobre minha cidade


Começo do século XVIII. A exploração das florestas e campinas do novo mundo caminhava a pleno vapor. O Brasil era mato, mato fechado e grosso, uma natureza enrugada, ríspida, intransigente, apesar de sua beleza explosiva. Viviam aqui os habitantes natos do local, adaptados às intempéries e pragas que essa terra cuspia. Os bandeirantes, os maiores aventureiros que deixaram suas marcas nesse solo, seguiam empunhando seus facões entremeados pelo perigo da floresta, pela excitação da descoberta de riqueza, no caso ouro, e pelo sofrimento causado pela privação de recursos materiais para tamanha empreitada.

Exatamente em 1713, João dos Reis Cabral aportou às margens de um riacho que viria a ser batizado de Córrego São Miguel, homenagem ao ídolo do dia. Foi João, mas poderia ter sido qualquer outro. A riqueza mineral aqui presente não ficaria encoberta pela camuflagem natural por muito tempo. Mas não importa, sigamos em frente. Imagine que palavras Reis Cabral gritou quando jogou os olhos no riacho e avistou diversas e suculentas pepitas douradas. “Escutem, corja de frouxos, eu não havia ordenado à fortuna que nos acompanhasse? Pois virem suas faces maltratadas para a água e vejam minha ordem sendo cumprida”. Talvez, não há como saber, só nos é permitido supor, inventar, romancear o fato.

Bem, começou então o trabalho de construir bases para aqui permanecer por um longo período. Iniciou-se aí o soerguimento de nossa cidade. Faltava um nome, e ele veio sugestivo, “monte em que pára o peixe”, em Tupi/Guarani. Àquele tempo e hoje, em nossa região a vista só alcança morros.

Quais perigos esses bandeirantes, bárbaros e nobres ao mesmo tempo, enfrentaram em nossas extintas matas? Quantos morreram na odisséia de nossa descoberta? E mais, quantos morreram para defender o território preenchido pelo nobre metal cintilante? Quantas famílias perderam seu esteio para as excursões intermináveis que terminaram por desnudar o verde virgem da região do Rio Piracicaba? Quem sabe tombaram centenas, milhares de desbravadores. E seu sangue hoje fertiliza o nosso solo, transmitindo arrojo, coragem e força a nós, frutos dessa terra.

Tratando-se disso, lanço algumas perguntas: será que nós, rio piracicabenses, estamos honrando o sangue de nossos descobridores? Nós, enquanto uma comunidade, estamos cientes e tranqüilos com relação aos nossos atos civis? Nossa cidade recebe uma contrapartida de seu povo, no que se refere à conservação, limpeza ou ampliação de espaços? Nossas comunidades se ajudam, trocam informações, debatem sobre os problemas que podem parecer localizados, mas que muitas vezes são gerais? Onde estão nossa história e nossas raízes? Onde se escondem nossos mártires, nossos mitos, nossos deuses? Não tenho as respostas para tais questionamentos. Mas tenho inclinações que me conduzem ao seguinte pensamento: muito mais pode ser feito, sempre. Melhorias não ocupam espaço.

Comemoramos os 294 anos do Arraial de São Miguel, que depois, em 1912, viria a ser chamado de Villa de Rio Piracicaba (ver registros antigos da Câmara). Quase três séculos de existência. Pensem comigo, temos as características de uma cidade de três séculos? Adquirimos um desenvolvimento concreto que nos propiciou esticar nossas fronteiras de influência? Ou, por outro lado, ostentamos em nossas ruas os símbolos de nosso passado calcado na riqueza do ouro? Temos respeito pela nossa condição de cidade que surgiu quando o Brasil ainda estava submerso na bruma densa da natureza? Reflitamos sobre isso, todos nós. E parabéns a nossa cidade!

quarta-feira, 22 de agosto de 2007

As Cozinheiras


A história que aqui se desenrolará tem como personagens condutores duas boas senhoras vizinhas de apartamento, habitantes de um prédio qualquer perdido no mar de concreto de uma grande cidade. Ambas dividiam três características. Saíram já adultas do campo para viverem no cenário urbano, eram viúvas e viviam sozinhas e prezavam ao máximo a cozinha. Eram duas cozinheiras excepcionais, daquelas que apresentavam olhos cintilantes quando seus corpos sentiam o calor vindo do fogão.

Felizes, ou não, eram os outros moradores daquele prédio, que dia sim e outro também tinham os narizes encantados pelo maravilhoso cheiro que escapava das casas das senhoras. O ruim é que dificilmente eram convidados a participar das ceias espetaculares que ali se desenrolavam. Mas por que as duas boas senhoras, tão amáveis no trato, que transpiravam carinho e acolhimento, não compartilhavam sua comida com os outros? O que posso dizer é que ali, naquela simples construção de concreto e ferro, se dava uma das maiores batalhas que o mundo já presenciou, uma disputa movida a sal, pitadas de pimenta, assados e cozidos. Sim, há muito elas cozinhavam devido a uma disputa que visava provar quem teria a melhor mão para o preparo de suculentas guloseimas.

Tudo começou com um elogio oferecido a Dona Lulu, moradora do 301, pelo jovem que vivia no 202. Naquele dia, o cheiro era tão penetrante que o rapaz resolveu subir até a casa da senhora para elogiá-la e, quem sabe, conseguir um pouco daquele manjar que ali nascia. Por obra do destino, Dona Izalda saía de casa naquele momento e presenciou a cena. Não há idade para que a inveja aja, ninguém é velho demais para se sentir inferior e assim querer mudar o quadro das coisas. A partir daquele momento, ao cruzarem os olhos, as duas perceberam que adentraram numa batalha sem volta, onde sairia vencedora aquela que provocasse maior salivação na boca de seus vizinhos.

Assim, todos os dias, na virada do dia e no fim da tarde, o aroma de carnes, legumes, massas e quitandas navegava pelo ar, ancorando o pensamento dos demais naquelas mesas. E tanto Dona Lulu quanto Dona Izalda faziam questão de, quando o prato estivesse pronto, sair um minuto pela porta para conferir qual cheiro prevalecia no corredor. Uma guerra velada e cruel. E assim seguiram por anos a fio, cozinhando e cozinhando compulsivamente, realizando verdadeiras obras da arte culinária. O que faziam com a comida era uma incógnita, pois é de se duvidar que conseguissem comer tudo sozinhas. O interessante é que mesmo em busca da aprovação dos convivas, nenhuma das duas senhoras jamais convidou alguém para um banquete. Eram duas sádicas, creio, visto que o que lhes aprazia era provocar a vontade dos pobres mortais devoradores de gorduras saturadas e alimentos velhos e murchos.

E como em toda a guerra, há o dia da disputa da batalha final. E esse dia havia chegado. Era inverno, a tarde já se despedia deixando para trás o céu rósea que precipita o frio. Dona Lulu havia preparado algo que, pensava ela, acabaria de uma vez por todas com a disputa e a consagraria como a melhor cozinheira do prédio. Passou a tarde a enxaguar os alimentos, picá-los, fervê-los, temperá-los, refogá-los. Fazia uma mistura divina de sabores, que exalava o aroma da cozinha de Deus. Realmente, até aquele dia, aquele cozido foi o mais penetrante, e chegou ao ponto de capturar narizes que passavam pela rua. Praticamente imbatível, pensou Dona Lulu.

Dona Izalda sabia que não conseguiria preparar, àquela hora, algo que pudesse rivalizar com o prato da concorrente. A cegueira da fúria então lhe afligiu. Já havia perdido muito na vida, do amor do marido ao carinho dos filhos que não mais a visitavam. Não perderia aquele que era o último suspiro a encher seus pulmões de vida, não deixaria de lado a derrota na área em que se considerava superior aos outros. Pegou a faca mais afiada, que encontrava-se suja de gordura no fundo da pia. Tocou a campainha de Dona Lulu, que ao atender pensou se tratar da rendição da inimiga, ante o tiro de misericórdia disparado naquele dia. Assim que seu corpo ficou totalmente exposto, Dona Isalda enfiou-lhe a faca nas entranhas sem hesitação alguma. Cortou-lhe o abdômen de cima a baixo e adentrou o apartamento da vizinha. Com o corpo deitado na sala e o sangue escorrendo pelo chão, pegou um prato, serviu-se lentamente do cozido, sentou-se e começou a comer. Após a primeira colherada, disse para si mesma, num tom desinteressado:

- Realmente, ela cozinhava melhor que eu.


terça-feira, 31 de julho de 2007

Última Chamada


- E então, como andam as coisas?
- Não sei se posso dizer que tudo caminha bem, acabo de chegar e ainda não sei nada sobre o lugar.
- Não se preocupe, é bastante incomum alguém chegar aqui e não gostar de nossos ventos.
- Pode até ser, mas pelo que consegui ver até agora... lá sei se o ambiente é mesmo acolhedor, e, importantíssimo, à prova de rotina. Afinal, creio que permanecerei pelas redondezas muito tempo.
- O que viu até agora?
- Sinceramente, algumas coisas bem estranhas. Alguns grupos seguindo em fila indiana, trajados todos com roupas flutuantes, preenchidas por uma cor ainda desconhecida no local de onde acabo de chegar.
- Algo mais?
- Todos aqui parecem cantar, sim, um canto estranho, que alguns radicais podem até mesmo considerar chato.
- Saiba que aqui esse canto se intrometerá em seu dia a dia, e quando menos esperar, estará você também cantando, da mesma maneira que todos.
- Alguma explicação para o fato?
- Claro, nada aqui é acaso, tudo é pensado e testado. Cantando, nossos hóspedes falam menos, elaboram poucas perguntas, relaxam, apreciam o brilho intenso e reconfortante da maravilha que plaina eternamente sobre nossas cabeças. Cantando, pode-se suportar o infinito de maneira mais branda, mais submissa, e não desesperar-se como vários que aqui chegaram.
- O que quer dizer? Já houve rebeliões por estas bandas?
- Rapaz, vejo que ainda não adquiriu os olhos necessários para enxergar em nosso breu. Realmente é muito difícil detectar os pontos negros num mar de luz como esse.
- Entendo. Como se lida para neutralizar uma rebelião desse teor?
- Não lidamos com a rebelião, apenas transferimos os revoltosos para baixo. Lá encontrarão o que procuram. É uma escolha, simplesmente isso. Quem quer ficar automaticamente se alinha às atividades possíveis aqui. Lá, outros acontecimentos têm vez. A maioria das lendas sobre os dois locais são, em sua maior parte, verídicas.
- Sempre duvidei disso.
- Pois veja agora quantas de nossas certezas são tão sólidas quanto algodão.
- É, tem razão. Mas a dúvida ainda queima, saiba você. Aliás, eu o chamo dessa maneira, você, ou mereces tratamento oficial?
- A maneira como me chama não importa, o que tem valor é saber que eu direciono as rédeas dessa carruagem.
- Isso eu já esperava. Todos, os que conhecia e que não conhecia, tinham temor e respeito ante seu nome. Eu, particularmente, nunca o desrespeitei, apenas libertei meus pensamentos. Mas, como já estavam em minha cabeça, não ia adiantar mesmo guardá-los lá.
- Não, engana-se. Esta lenda é falsa, não leio mentes, interpreto ações. E saiba que seus discursos realmente chegaram até meus ouvidos. Porém, não se aflija, a revanche ou a vingança não fazem parte de meus meios. Minha consciência nada interfere no meu trabalho.
- Certo, certo. Mas o fato é que ainda não decidi o que fazer. A minha passagem pelo seu concorrente foi impressionante. Fui apresentado a novidades que arrebataram minha lógica, minha razão. Aqui, tudo corre em passos mansos, muito mansos.
- Seu tempo esgotou-se. E então, permanece aqui ou não? E lembre-se, não meça o futuro, que, como sabe, será longo, por tudo aquilo que viveu anteriormente. Última chamada para onde o bem-estar reina absoluto. Embarcas?
- Com todo respeito, nem que... !

quarta-feira, 23 de maio de 2007

Cânforas e Mentiras


Aquele sujeito sabia realmente o que procurava. Buscava simplesmente não desejar mais nada, viver numa flutuação irresponsável e sem maiores objetivos, apenas acordar e realizar as mínimas tarefas necessárias à manutenção da vida. Aliado a isso, guardava também a intenção de desfrutar e sentir o mundo, apreciá-lo, analisá-lo, sofrê-lo, escorregar por entre as vielas desconhecidas da próxima parada.


Era ainda jovem, mesmo carregando cinqüenta e sete anos na mochila. O hábito no qual ficava mais evidente a sua presilha infanto-juvenil era o pacote de cânfora que sempre levava consigo, não importando para onde se dirigia, trabalho, bares, viagens, casa da sogra etc. Carregava-o pelo fato de estar impregnado em sua memória o conselho de sua avó, ainda proferido quando este possuía augustos seis anos de idade.


- Meu filho, não há nada melhor para tratar um machucado dolorido que cânfora. Lembre-se disso, é a única coisa valiosa que lego a você nessa vida.


A avó sabia ao certo as características do neto, agitado, impaciente, irrequieto, turbulento, sempre a andar com os joelhos esfolados, as pernas doloridas por alguma pancada, fruto de uma brincadeira mais ousada.


E ele não conseguia distinguir claramente o que o levava a seguir esse conselho tão a sério, num ritual quase litúrgico, infalível, certeiro como o sol que salta por detrás das montanhas todas as manhãs. Ora, já era um homem formado e maduro, com responsabilidades bem definidas, possuidor de distintos cabelos prateados a marca-lhe a idade. Por que até hoje seguir um conselho oferecido pela avó, há cinqüenta e um anos atrás? Há muito havia desistido de entender essa sua peculiaridade, passou apenas a respeitá-la.


Bem, a mochila encontrava-se arrumada, perfeitamente acomodada na traseira de sua Harley, moto não muito nova, mas ainda confiável e valente. A esposa o fitava com os olhos marejados, e o pior é que não suspeitava das reais intenções de seu atual ex-marido, que era partir rumo a um lugar que nem ele próprio sabia qual era. A ela disse que aquela seria apenas uma viajem rápida, de uma ou duas semanas no máximo.


Separou o pacote de cânfora cuidadosamente, prendeu-o ao banco da Harley de modo a torná-lo facilmente acessível caso fosse necessário utilizá-lo, abotoou o capacete em seu pescoço barbudo e engatou a primeira. O cheiro do motor pulsando e cuspindo o vapor quente e lubrificado do motor era inebriante para aquele recém-inaugurado viajante sem destino. A partir de agora tudo adquiriria uma nova textura, um novo gosto. Uma vívida sensação refrescante havia tomado seu corpo. Assim como uma criança que recebe um presente, deitou um sorriso largo em seu rosto.

Porém, ele ainda não estava completamente livre, tinha que cruzar as ruas de sua cidade até pegar a auto-estrada. E foi nesse trajeto insignificante, ante as distâncias que planejou percorrer, que o infortúnio pediu um lugar à mesa. Numa curva ordinária qualquer, construída com o asfalto duro dos novos tempos espinhosos, o pneu de sua moto suavemente escorregou. Um veículo vinha em sentido contrário, seu corpo foi jogado para debaixo daquele carro. Atropelado, esmagado e ensangüentado, praticamente morto, visualizou o pacote de cânfora ainda amarrado ao banco de sua moto. Antes do último suspiro, balbuciou com extrema dificuldade:


- Vovó, a senhora mentiu.

segunda-feira, 2 de abril de 2007

Será?


Não entendo. Acabo de ler que a Record ultrapassou o SBT no Ibope, na média mensal. As declarações da rede santa foram todas no sentido de que Edir realmente quer encoxar Sô Sílvio. Aí a reportagem me diz que o SBT não comentou o assunto, e que sua assessoria de imprensa foi desativada há um mês. Uma empresa de comunicação sem assessoria de imprensa. Indicativo forte de que o Lombardi pode nunca mais destilar sua voz aos domingos, num futuro bem próximo.

quinta-feira, 29 de março de 2007

Pan do Brasil – Mais uma farra verde e amarela!

Entre os dias 13 e 29 de julho o Brasil sediará a 15° edição dos Jogos Pan-americanos, no Rio de Janeiro. A competição contará com 42 países, que disputarão 33 modalidades esportivas. O país se mostra mobilizado, eufórico com a realização de tal evento nas terras tupiniquins. Há um clima de auto-afirmação transbordante, a organização dos Jogos seria uma mostra da capacidade brasileira, um retrato de nossa competência, um exemplo de grandeza que se faz ver em cada gota de suor derramada pelos atletas. Confesso que guardo ressalvas quanto ao Pan do Rio de Janeiro, por diversas razões.

Em primeiro lugar, considero os Jogos Pan-americanos uma competição esvaziada, de pouca relevância para o ambiente esportivo mundial. A começar pelo fato de a América do Sul não possuir tradição sólida em esportes como atletismo, natação, ciclismo ou handebol, por exemplo. Não há aqui atletas de ponta em diversas modalidades. Não há tradição também na América Central, excetuando-se Cuba, potência esportiva sim, mas um ou dois degraus abaixo dos gigantes. Resta o norte, onde os Estados Unidos, habituado ao alto do pódio, não enviará a sua equipe principal, formada por diversos recordistas mundiais. Competirá com um time B. Desconheço quais atletas do Canadá virão, porém, de qualquer maneira, o Canadá também não é lá essas coisas, foi o 24° colocado no quadro de medalhas das Olimpíadas de Atenas.

Não discuto aqui o porquê deste atraso esportivo, apenas constato que a região, noves fora dois países, é irrelevante no quadro mundial dos chamados “esportes especializados”, alcunha dada pela imprensa, que classifica assim todas as modalidades esportivas com menor apelo junto ao público. Uma medalha de ouro ganha num Pan gera menos reconhecimento que uma medalha de ouro ganha numa etapa de um campeonato mundial, como os de natação ou de ginástica. Isso é fato.

Me incomoda também o carnaval que a mídia realiza em torno dos Jogos. Três grandes emissoras de tv que compraram os direitos de transmissão, Globo, Band e Record, iniciaram uma lavagem cerebral em suas audiências. São programas, chamadas nos intervalos, matérias veiculadas em todos seus telejornais, assim como em rádios e revistas de sua propriedade. Uma massificação extrema do Pan, com uma cobertura predominantemente positiva. Óbvio, pois ninguém desvaloriza seu produto de venda. Atletas são apresentados como possíveis heróis, vingadores do esfomeado e raquítico povo brasileiro, reconstrutores da moral nacional. Infelizmente, a mídia não deveria seguir esse caminho, mas essa é outra discussão.

A grande imprensa não se atentou, ou fingiu não se atentar, para fatos que saltam às vistas no planejamento e execução do Pan. A começar pelos gastos com as obras de infraestrutura, inicialmente orçadas em R$ 800 milhões, o que para mim já é demais, e que já ultrapassaram a casa dos R$ 3 bilhões. Não houve uma averiguação profunda por parte dos veículos de comunicação sobre o porquê dessa discrepância entre estimativa e execução, com o agravante de que boa parte desse valor fluiu dos cofres públicos. Esse cenário exala um cheirinho desagradável, um odor que remete à prática já bastante utilizada pela classe política nacional, vocês sabem qual. Seguindo, creio que um investimento de R$ 3 bilhões numa competição esportiva, seja ela qual for, é exagero para um país que possui um investimento global presumido para 2007 de aproximadamente R$ 28 bilhões. Isso sem mencionar que a maioria das obras encontram-se atrasadas, gerando desconfiança quanto a estarem adequadamente prontas quando da realização da competição.

Outra falha da cobertura midiática é a inexistência de pautas que relatem os transtornos provocados pela execução das obras. Por exemplo, 542 casas que circundam a Vila do Pan já foram demarcadas com tinta para demolição, antes mesmo que um acordo de desapropriação fosse fechado, o que caracteriza a expulsão dos moradores por parte do Estado. A alegação da Prefeitura foi de que as residências se encontram em área de risco. Então, por favor, iniciem já a desapropriação de todos os barracos das favelas cariocas, pois a maioria deles estão em situação de risco.

A poeira levantada pelos canteiros de obras gera problemas respiratórios como asma, bronquite, sinusite e alergias nos moradores vizinhos. Uma mulher passou a arcar com R$ 75 mensais para a compra de vacina anti-alérgica para sua filha. Outra se viu obrigada a providenciar a mudança de sua mãe de um local vizinho às obras do Estádio João Havelange, devido ao agravamento de uma bronquite. São fatos isolados, mas que se analisados em conjunto podem refletir a desorganização que alicerça a logística e o planejamento dos Jogos. Há como se evitar tais transtornos, bastaria que tudo fosse feito com competência, preparo e inteligência.

O absurdo maior. Vários canteiros de obras abrigam focos de larvas dos mosquitos da dengue. Um dos funcionários contraiu a doença duas vezes, e afirma que há larvas presentes em lajes e reservatórios de água das obras. Inacreditável, o governo, tanto estadual quanto federal, gasta milhões conscientizando a população sobre os riscos e as maneiras de se evitar a proliferação da doença, ao mesmo tempo que obras de sua responsabilidade se transformam em criadouro e disseminadores da dengue. Coisas de Brasil, e que infelizmente não atraíram a atenção da grande mídia, creio eu, por comodidade, desleixo e interesse na realização de um Pan limpo e perfumado.

Para finalizar, aí vai uma notícia que condensa tudo que foi dito: a pista de patinação de velocidade construída para o Pan não seguirá os padrões oficiais, sendo feita de um piso inusual para tal competição, além de não trazer uma inclinação de 15° em suas curvas, exigência seguida em todo mundo. Motivo de vergonha ou embaraço? Nada disso. Segundo o técnico da equipe brasileira, agora as nossas chances aumentaram, pois os atletas terão mais tempo para treinar no local que as equipes estrangeiras, o que lhes conferirá uma maior adaptação às peculiaridades da pista. Se não é possível levar o ouro pela competência, que seja através de fatores externos à excelência esportiva.

Estes são alguns argumentos pelos quais justifico minha discordância com a festividade, digo, com os Jogos. E o argumento de que uma competição como essa deixa marcas positivas para a imagem da cidade do Rio, e conseqüentemente do Brasil, além de gerar uma infraestrutura que poderá ser aproveitada posteriormente me causam dúvidas. Para tal, é necessário dispor de um plano bem elaborado, que contemple os mínimos detalhes e que englobe um largo horizonte temporal, coisa que aparentemente a organização desse Pan não se preocupou em buscar. Normal, muito normal em se tratando de Brasil!

terça-feira, 27 de março de 2007

Algumas Lições

"Em primeiro lugar, e acima de tudo, não pode haver prestígio sem mistério, pois a familiaridade produz o desprezo. Todas as religiões possuem o seu 'santo dos santos' e nenhum homem é um herói para o seu 'empregado de quarto'. Os projetos, o comportamento, as operações mentais de um líder, devem possuir sempre um 'algo' que os outros não conseguem entender, que os intriga e que os agita, atraindo a sua atenção. Esta atitude de reserva exige, como uma regra, uma economia correspondente de palavras e gestos. Nada reforça mais a autoridade que o silêncio. O silêncio é a maior virtude do forte, o refúgio do fraco, a modéstia do orgulhoso, o orgulho do humilde, a prudência do sábio, e o bom senso dos tolos". De Gaulle


"A maioria das pessoas desvaloriza aquilo que facilmente entende, e veneram o que não entendem. Para serem bem valorizadas, as coisas devem ser difíceis. Para conquistar o respeito, pareça mais sábio e mais prudente do que seria exigido pela pessoa com quem você está tratando. Faça com que ele fique intrigado e tentando entender o significado do que você falou. Mas faça-o com moderação". Garcián

O homem que é movido por desejos ou por medo, é conduzido naturalmente para buscar alívio nas palavras. Se ele cede à tentação é porque, ao externalizar sua paixão ou seu terror, ele tenta lidar com eles. Falar é diluir o pensamento, é dar vazão ao ardor, em suma, a dissipar a força, enquanto que a ação exige a sua concentração. O silêncio é a preliminar necessária para o ordenamento do pensamento. Os homens instintivamente desconfiam de um líder que fala demais. Mas este hábito sistemático de reserva, adotado pelo líder, produz pouco ou nenhum efeito, a menos que seja percebido como a forma pela qual ele oculta a sua firmeza e determinação. É precisamente do contraste entre poder interior e controle externo que a ascendência é reconhecida, assim como o estilo num jogador consiste na sua capacidade de mostrar mais frieza que o usual, quando aumenta a aposta, e a qualidade de um ator está em mostrar emoção, mantendo controle sobre si". De Gaulle

segunda-feira, 19 de março de 2007

O Destino e os Homens



A vida parece correr nos conformes. A cabeça é requisitada somente para desatar os nós do dia-a-dia. O coração bate robusto, vivo, nutrido pelo amor a alguém. Os projetos de vida vão um a um ganhando forma, se concretizando na pueril estrada do futuro. Os sonhos se apresentam mais próximos, as conquistas comprazem a alma, os elogios enaltecem a capacidade de ser e agir. E, de repente, ele age de maneira inesperada, trazendo consigo a tristeza, a decepção, o lamento, a perda, a visão de que o trem da vida descarrilou. Ele é o destino.


Num primeiro momento, o desespero de sentir os pés se desgrudarem do solo firme é acachapante. Logo exclamamos, taxativos: “Não há mais volta”. Procuramos então os culpados e as razões pelas quais o destino apontou sua arma contra nossa tranqüilidade. Esquecemo-nos de que ele é isento de culpa e age sem motivos maiores, ele simplesmente acontece. É inexorável e incompreensível. Podemos até tentar controlá-lo, mas nunca conseguiremos, não da maneira como prevemos. Ele é tão arredio quanto o mais selvagem dos animais. Até aqui todos somos iguais.

Mas a maneira como lidamos com o imprevisto é que nos diferencia, a ação ante o obstáculo separa os fracos dos grandes, faz brotarem os homens e secarem os medíocres.


Há os que habitam a margem da angústia e do lamento. Estes adotam a companhia das lágrimas, e nelas se afogarão. Serão engolidos pelos acontecimentos e murcharão. Permanecerão resignados, queixando-se e queixando-se até que as cortinas do espetáculo se fechem. E quando isso acontece não há tempo para mais nada, muito menos para as lamúrias.


Do outro lado do rio da vida encontram-se os que se nutrem das dificuldades. Estes enxergam em cada infortúnio um aprendizado, uma possibilidade de exercitarem sua capacidade de superação. São homens que realizam a mais nobre ação de um ser: o tentar. Estes não se intimidam com a possibilidade do fracasso, estão dispostos a carregar em seus ombros o peso do Sol caso isso lhes proporcione a vitória. A rendição transmuta-se no mais vergonhoso dos pecados.


Óbvio que nem todos que tentam conseguem postar-se no altar dos gigantes, mas com certeza tombam com a sensação de dever cumprido. Reconhecem a potência do destino, mas não o temem, apenas o respeitam. Não se sentem derrotados, pelo contrário, experimentam como ninguém o calor da atitude. Os que se resignam ao se depararem com os espinhos do destino terão sempre suas chagas expostas, infeccionadas, serão sempre reconhecidos como fracos e impotentes.


É melhor aprender com as peças que o destino nos prega, pois a vida nada mais é que uma montanha-russa, com suas subidas lentas e graduais entremeadas por quedas bruscas. Aprendendo com as dificuldades, não mais berraremos quando a descida estiver à nossa frente.

segunda-feira, 12 de março de 2007

A Fé, Comodite Internacional

Num mundo globalizado, a fé não poderia ficar para trás. Estão aí links para sites da Igreja Universal em alguns países. Creio que esteja próxima a eleição de Edir Macedo como um dos maiores executivos do mundo. Crédito ao Ex-blog do César Maia:

Rússia

Japão

Itália

Inglaterra


terça-feira, 6 de março de 2007

As Raposas


O deputado Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN) admitiu o uso de dinheiro público para a compra de matérias jornalísticas em um jornal de seu estado, o Tribuna do Norte. Um agravante, o veículo é de sua propriedade. Não é necessário dizer mais nada. Isto explica tudo, a violência, a corrupção, o atraso, a impunidade, o lamaçal educacional, o esgoto a céu aberto, a decapitação do verde. É a prova cabal da ausência de verdadeiros homens públicos em nosso templo da política. E pior, a confissão, que em qualquer lugar menos fantástico que o Brasil faria com que o político fosse sumariamente excluído da vida pública e postaria o jornal no limbo da desfaçatez jornalística, da completa falta de ética, ainda não se transmutou em nada. O deputado continua dispondo de seu gabinete confortável e aromatizado, provavelmente bebericando um bom vinho em um dos restaurantes de Brasília. O jornal continua em circulação, tranqüilo, seguindo sua rotina jornalí$tica. E pior, outro deputado, Osvaldo Reis (PMDB-TO), também foi pego em prática semelhante, a diferença é que o veículo não era de sua propriedade. Mais um retrato do Bananal Brasil.

O Bananal Brasil


Uma notícia digna de um país de terceiro mundo, quarta grandeza, quinta categoria. Segundo reportagem veiculada no jornal Folha de S. Paulo, de autoria da repórter Lilian Christofoletti, a Polícia Federal atuará para que George W. Bush, em visita ao Brasil, não assista a possíveis manifestações contrárias à sua estada em solo tupiniquim. Mas, pelo amor de Deus, o que é isso? Um governante execrado mundialmente devido à sua inépcia política, suas estratégias equivocadas que empurraram ainda mais o planeta para a desordem, sua linha de atuação unilateralista, ser tratado com tanto esmero em nosso país? Que o deixem presenciar as manifestações, que o deixem sentir a rejeição provocada por suas próprias atitudes enquanto presidente da potência do norte. Ele, e nenhum outro governante, deve ser apartado do calor do povo, mesmo que muitas vezes o calor do povo não seja a voz da verdade e da racionalidade. Este é mais um sintoma de um país que arregaça suas calças e posta-se de joelhos ante o dito “mundo desenvolvido”.

Preparem-se!!!


Senhoras e senhores, preparem-se! Em 2036, segundo o jornal espanhol "El Pais", um asteróide alcunhado Apofis virá de encontro ao nosso querido lar, causando estragos que nos varrerão da face do planeta. Em 2029, um presságio da tragédia será sentido, quando o mesmo asteróide colocará em colapso a rede de satélites responsáveis pela comunicação global. É isso, aproveitem enquanto é tempo, caso acreditem em tal informação. Leia aqui a matéria original.

E a vida continua...



Então agora devemos todos debater, com ar pomposo e de alta sabedoria, o problema da segurança pública nacional. Basta um caso, dos mais execráveis, diga-se, para que a comoção nacional empurre todos na direção da exaltação, do linchamento público dos culpados, dos discursos acalorados, porém quase sempre vazios. Não é dessa maneira que um problema tão grave é solvido, não é saudável a criação de mártires nessa seara, como a mídia fez com o menino João Hélio.

Primeiramente, espanta assistir a mobilização da sociedade somente a partir de acontecimentos pontuais, que envolvem quase sempre a classe média e alta. Aqui não desdenho do ocorrido ao garoto, vítima de uma atrocidade selvagem, mas critico o comportamento tão passivo de todos ante a violência sofrida diariamente pelos habitantes das áreas periféricas, reinos onde o poder é imposto pelo calibre mais potente. Lá, onde a vista só chega através das câmeras, muitos João Hélios são mortos diariamente. Não cabe discutir qual maneira de se matar é a mais bárbara, pouco importa. O importante é termos consciência que a população de baixa renda almoça o chumbo do crime diariamente.

Gostaria de ouvir vozes indignadas quando garotos favelados são mortos pela polícia, que oferece sempre a mesma justificativa: troca de tiros com traficantes. A imprensa não procura apurar corretamente o ocorrido, muitas vezes inocentes são fuzilados pelo Estado. Agradar-me-ia ser convocado para uma manifestação quando uma bala perdida perfurasse o crânio de uma criança de dois anos, que dormia em seu berço dentro do barraco de madeira e lona que seu pai conseguiu construir. Ficaria satisfeito assistir aos acadêmicos, políticos e membros da sociedade civil organizada iniciarem um debate construtivo em razão da prisão de inocentes, pobres, que vêm sua vida, sua moral e sua dignidade serem estraçalhadas pelo sistema prisional brasileiro, tudo porque não dispunham de recursos para arcar com as despesas de um bom advogado. E sentiria imensa alegria ao presenciar a mídia se mobilizar com tal afinco em defesa desses transparentes cidadãos de segunda ou terceira classe, impotentes, sem voz, sem autonomia, sem direitos.

Volto a repetir, aqui não faço troça do ocorrido ao garoto, e acho sadio que o debate, ao menos aparentemente, ganhe contornos mais sólidos. Mas me entristece a perspectiva de que tudo isso seja esquecido, até que a os dez ou quinze por cento mais abastados voltem a sofrer um golpe horrendo da violência. Enquanto isso, aqueles que possuem os tiros como despertador que suportem a sua vida tocada no fio da navalha.

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2007

Um Planeta Desgovernado



África. Um continente jogado às traças, mergulhado em guerras e totalmente apartado do desenvolvimento material de nossa era. Suas crianças padecem com as bocas escancaradas à espera de migalhas, ou então são utilizadas como soldados e morrem sem vivenciar as fantasias inerentes à infância. Suas mulheres são violentadas por combatentes, obrigadas a viverem num ambiente de violência, desesperança e miséria. A elas é negado o direito de receberem flores. Quase um terço de sua população adulta é portadora do HIV, fato que coloca a espada sobre a cabeça de milhões. Não há remédios, não há assistência, não há paz, não há vida num lugar assim.

Iraque. Um país destroçado por uma invasão em nome da democracia e dos direitos supremos do homem. A semente democrática não floresceu e o único direito lá existente é morrer repentinamente vítima de um atentado terrorista. A guerra civil é uma verdade tão concreta quanto o metal das balas que cortam os ares. Novamente as crianças são as mais prejudicadas, envoltas em calamidades das quais não são responsáveis. Por lá, a única escola que funciona é aquela que ensina o manuseio de rifles e prepara sua juventude para a morte em nome da fé.

Coréia do Norte. Um país diminuto, governado por um déspota megalomaníaco que em nome de suas convicções subjuga toda uma população, leva-a ao encontro da fome, da pobreza, do obscurantismo intelectual, da âncora que os arrasta rumo às profundezas do breu. Além disso, um país vocacionado para o conflito, até mesmo nuclear.

Irã. Uma nação islâmica fundamentalista que regride aos tempos das trevas. Financiadora de entidades terroristas, disposta a se valer de armas atômicas para defender seus interesses, castradora de liberdades mínimas do ser, intransigente na luta pela implantação de um mundo guiado pelos preceitos de sua religião. Um espinho venenoso cravado no seio da paz e da conciliação humana global.

Venezuela. Um país inundando pelo petróleo, governado por um louco que em seus íntimos desejos guarda a vontade de ser um pop star, tamanha voracidade que possui pelas câmeras. Um governo que ludibria sua população com políticas ocas e inconsistentes, graças aos rios de dólares provenientes da atual alta dos preços do ouro negro. Um país que caminha a passos largos para a ditadura, que traz consigo a censura, a perseguição política, a tortura, a proibição do pensar. E a Venezuela começa a fazer escola na América Latina, vide o Equador, que passou a caminhar de mãos dadas à Chávez.

Estados Unidos. Uma potência histérica, paranóica, arrogante, alienada e beligerante. Sua população é dada ao consumo desenfreado, à valorização excessiva do ter em detrimento do saber, do ser. Um dos principais responsáveis pela atual onda de pessimismo quanto à catástrofe ambiental que se avizinha. Uma nação acéfala, que nada em riqueza e se afoga nas águas da onipotência. O principal ator em conflitos mundo afora, e pior, o iniciador de vários deles.

Brasil. A terra prometida, o país que não foi, não é e aguarda placidamente a boa ventura do futuro. Um lugar onde a violência encontrou seu ninho, a pobreza fez morada e a corrupção é endêmica. Um país que chama a covardia e a passividade de cordialidade, que trata com desleixo o maior celeiro natural do mundo, que rasga sua constituição, que se nega a enfrentar seus problemas primordiais. Um país que instala suas gerações futuras na caserna da mediocridade, da não-possibilidade. Um Estado que se mobiliza mais por uma festividade nacional, como o carnaval, ou por uma competição esportiva, como a Copa do Mundo, do que por suas necessidades sociais mais urgentes.

Não há muito que se comemorar, e há muito com que se preocupar. Parafraseando a música: “E ainda pode se encontrar quem acredite no futuro”.

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2007

O Homen Adestrado


Dois animais. Um bípede, o outro quadrúpede. Um fala, o outro late. Um dá socos e pontapés, o outro morde.

Estão ali, parados, o cão e o homem, um preso em sua coleira de couro, o outro em sua coleira de idéias. O que o indivíduo tenta é adestrar os instintos originais do cachorro, fazer com que este siga prontamente suas ordens, pronunciadas em ríspidas monossilábicas. Cumprida a tarefa, o cão recebe uma gratificação e é arrebatado por um furor momentâneo.

A cada êxito, o amestrador deixa resplandecer em sua face uma alegria incontida, um orgulho vistoso, como se o mundo subitamente houvesse se rendido aos seus comandos. O sentimento de poder realmente embriaga, a condição de ditar entorpece.

Em um momento, por mais que o homem goste do cachorro, ou pense que goste, e trate-o de maneira digna, ele o rebaixa, o menospreza, o inferioriza. É o poder da técnica triunfando sobre a natureza. Bastaria um ataque para que o cão, que não era dos pequenos, estraçalhasse a carne de seu inquisidor. Mas não, em troca de uma recompensa das mais fugazes e, importante, devido também a uma vara, ele se submete.

Caso o cachorro, cujo nome era Tod, esboçasse a menor reação contrária, era ofendido por esta vara, não um galho qualquer, mas sim uma daquelas produzidas em escala industrial, manufaturadas exclusivamente para a punição. E desconfio que Tod era bem esperto, pois não foram necessários mais que dois ou três golpes para que ele seguisse resolutamente as ordens do “líder”. Ou seja, além de não apanhar ainda receberia um prêmio, situação bem mais vantajosa, não acham?

Está transcrito acima um cenário onde interagem um cachorro e um homem. Aparentemente nada demais. Com um pouco de imaginação, comparem agora esta situação ao que se passa em nosso mundo, em nossa sociedade, na relação entre os homens. Em minha irrelevante opinião, a semelhança chega a ser sombria.

Realmente é necessário pensar em que mundo vivemos, o que queremos e o que podemos fazer para aperfeiçoá-lo, porque já habitamos as bordas do insustentável.

Não se deixem dominar por sensações rasas que evaporam-se de suas memórias tão rápidas quanto um flash, não coloquem seus espíritos à venda!