domingo, 30 de dezembro de 2007

Sobre a água, o homem e a Lorenzetti


Que calor infernal. Minha roupa está ensopada, meu cheiro não é dos melhores, o bafo quente do ar me asfixia. Aqui, nesse ônibus lotado, o inferno se assemelha a uma fresca e aprazível cachoeira. Tudo que quero é sair logo dessa lata subumana, chegar a minha casa e me derreter embaixo de uma bela ducha gelada.

Ah sim! Agora sim. O calor de outrora se foi, me sinto bem melhor. Me banho há mais de 10 minutos, a torneira está aberta no nível máximo e a água escorre abundantemente pelo ralo. Ficaria aqui por muito tempo ainda, mas de repente eis que uma vigorosa sensação de culpa arrebate meus pensamentos. Olho aquele largo fio de água e espuma descendo rumo ao esgoto e lembro que milhões de pessoas, quiçá bilhões, estão tão distantes da água quanto eu do estrelato. Movido por essa sensação extremamente desconfortável desligo imediatamente o chuveiro.

Mas que raio de mundo é esse? Nem mesmo um prazer tão comezinho quanto um banho demorado nos é permitido. Conseguimos estragar tudo de maneira tão completa que até mesmo a água, recurso primordial para o surgimento da vida, está em perigo, e bota perigo nisso. Somos tão cruéis que nos valemos da carência de água para alavancar projetos pessoais, como o fazem os políticos brasileiros com suas eternas promessas de exterminar a chaga da seca no sertão. Assim, desligo o chuveiro e não me sinto contento, queria ficar mais tempo debaixo de seus relaxantes pingos. Já que não posso ajudar diretamente, ao menos procuro não atrapalhar mais ainda. Porém, ultimamente, tenho pensado em algo que anda me incomodando.

Meu vizinho segue uma rotina parecida com a minha, e é ele também um usuário do sofrível transporte público. Ele sabe das benesses que um bom banho gera ao fim de um extenuante dia de trabalho. Porém, diferentemente de mim, ele não se importa com quem quer que seja. Não está nem aí. Se existem milhões morrendo com as bocas abertas e secas, não é problema dele, pois não teve nada a ver com a cagada que fizeram com a água. Ele toma seu banho e demora o tempo que achar necessário, minutos ou horas, pouco importa. Ele paga suas contas no fim do mês e assim seu papel está feito.

Ele não se deixa tocar por discursos acalorados, teses ameaçadoras, súplicas dramáticas que alardeiam o fim dos tempos com a destruição do ambiente, mais detalhadamente, da água. O que ele quer é simplesmente relaxar, se livrar da sujeira da rua e sentar-se em sua poltrona com a pele já limpa e os cabelos semimolhados. Começo a achar que esse cara sabe das coisas.

Eu, pelo contrário, fico aqui nessa penitência nula que, além disso, ainda furta meu prazer. Por exemplo, se economizo 20 litros de água por dia, durante, suponhamos, 30 anos, tenho um total economizado de 219.000 litros. Aí, numa bela tarde de terça-feira, vejo na internet que uma indústria acaba de contaminar o Rio Sei Lá o Quê com o despejar de uma grande quantidade de produtos químicos em seu leito, que abastece milhares de pessoas e que demandará anos e anos para ser recuperado. Porra, todo meu esforço foi literalmente (desculpem o trocadilho ordinário) por água abaixo.

Eu sei, eu sei, agora vários já estão pensando: “Mas cada um tem que fazer sua parte, se cada um seguir direito no fim teremos um mundo melhor e blá blá blá”. Bem, começo a achar que pouquíssimos, uma parcela ínfima, cumpre com seus deveres. Acho que a grande maioria tenta apenas convencer o outro a agir de maneira certa, livrando-se assim de sua parcela no trato e desviando-se do sacrifício em nome da continuidade da espécie e do planeta. Sei não viu, mas, sinceramente, cada vez mais tenho isso como verdade. Querem que eu deixe de lado meu tão desejado e merecido banho demorado para que assim possam eles se comprazer com a água cuspida pelo chuveiro.

Por enquanto continuarei a seguir os conselhos vindos de cima, dos especialistas e ambientalistas e mais todos os “istas” que dia sim e outro também nos entopem com explicações e alarmes sobre o futuro. Mas fiquem sabendo que estou de olho. No primeiro sinal que comprove minha teoria deixarei todas essas preocupações de lado para me sentar debaixo de uma Lorenzetti bem gorda, e por lá permanecer até o fim dos tempos. E tenho dito.

Uma História de Natal


Eu nunca estive no sertão, mas mesmo assim vou contar uma história de natal que lá se passou. No meio daquela terra rachada havia uma casinha feia, mal acabada, pequena e desconfortável. Essa casinha, como de praxe, acolhia dez pessoas onde mal cabiam três. Era afeiçoada às celas dos presídios brasileiros, em que até o sono é escravo de uma fila.

Bem, nesse local miserável vivia um menino, que compartilhava sua falta de fortuna com seus irmãos mais velhos e com seus pais, já bastante debilitados pela simples falta de recursos básicos, como água e comida. O nome do menino eu não sei, mas pouco importa, como ele há outros tantos, todos engolidos pelo calor dilacerante do abandono e da falta de atenção por parte das autoridades e da sociedade.

O menino não sabia o que era natal. O seu pai havia acordado com a mãe que nenhum dos filhos conheceria o que se passa nessa data. O motivo é que nem em um milhão de anos eles poderiam comprar presentes, preparar uma farta ceia, trazer ao seu teto amigos para compartilharem o nascimento de Jesus. Não queriam impor aos corações de suas crias um desgosto tão precoce. Porque quando se é criança, por mais rude que seja o ambiente ao redor, ainda é possível viver feliz, na fantasia inerente à mente infantil que consegue digerir até mesmo a fome. Mais tarde é que toma assento a decepção, a noção de sofrimento, o esmagamento da auto-estima. Os filhos tomavam conhecimento do natal, da maneira como o comemoramos, por volta dos 12, 13 anos, idade em que iam até a cidade mais próxima (110 quilômetros) com o pai vender os parcos produtos que ali brotavam. A essa altura já podiam suportar a infelicidade de terem nascidos naquela terra espinhosa.

A família era católica, devota fervorosa dos santos que arrefecem as pauladas da pobreza. No 25 de dezembro apenas rezavam em homenagem ao nascimento de Jesus, com a esperança de que ele atendesse seus chamados e lhes concedesse a tão esperada e afortunada graça divina. Até aquele natal nada ainda havia descido pelas escadarias do Céu, mas continuavam esperando e crendo. Desta feita, amontoavam-se todos em frente a uma imagem de barro e assim demonstravam seu respeito e sua reverência ao sagrado. Nesse dia os únicos que trabalhavam eram o pai e filho mais velho. De certa maneira, esse era o presente do patriarca para sua prole, um dia de descanso.

Mas nesse natal o inesperado aconteceu. Ao longo do trilho que levava até a porta do casebre apontou uma carroça, com vários pacotes como carga e guiada por um ser rechonchudo, vestido de vermelho, acompanhado por mais duas pessoas. O pai encontrava-se àquela hora na lavoura, que ficava próxima da casa, ceifando a plantação seca e miúda. Quando avistou a carroça ficou sem entender o porquê daquela vinda, mas como era o responsável por todos, foi rápido de encontro ao transporte.

A ele foi explicado que aquilo era uma ação de uma Ong, que vinha distribuir presentes às crianças carentes do sertão. O pai mirou bem os olhos do sujeito vestido de Papai Noel e, secamente, disse que não permitiria que seus filhos recebessem presentes. Argumentou que, pior do que seus filhos nunca ganharem nada, seria ganharem daquela vez para depois ficarem novamente desassistidos, alimentando uma esperança tola e inútil de que o natal brilharia novamente por ali.

Após terminar sua fala, o pai percebeu que o caçula encontrava-se próximo da carroça. Ele tinha escutado todo o diálogo. Seus olhos brilhavam como duas centelhas, vendo todos aqueles embrulhos maravilhosos, coloridos, recheados de surpresas que ele nunca poderia imaginar o que eram. Sem a menor comoção, o pai virou-se e disse-lhe, não por maldade, mas por apego à realidade:

- Volta pra dentro agora antes que eu te dê uma sova.

Ele voltou, cabisbaixo, com as lágrimas a inundar seus olhos. O pai despediu-se dos homens da carroça e adentrou o casebre. Puxou o menino pelo braço, colocou-o no colo e falou:

- Num se avexe. Nossa vida é assim. Nós num tem direito de ganhá presente. Deus quis que nós só panhasse os embrulho do chão.