quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Papo de Cacique - Parte 1

Acabo de sair de uma entrevista com o vice-prefeito de São Gabriel da Cachoeira, André Baniwa (PV). Foi uma conversa bastante esclarecedora, que envolveu desde a disputa política local até características e anseios da população indígena que vive ao longo do Rio Negro.


André Baniwa, vice-prefeito de São Gabriel da Cachoeira

Para conhecimento, São Gabriel da Cachoeira foi a primeira cidade brasileira a eleger dois indígenas para os cargos de prefeito – Pedro Garcia (PT) – e vice. Tratando-se somente de prefeito foi a quarta. Pode parecer estranho que só agora uma cidade com 85% da população formada por índios tenha realizado tal feito, mas os motivos expostos por André Baniwa explicam em larga medida esse paradoxo.

O vice-prefeito relatou o sentimento de desconfiança que dominava a mente dos índios com relação aos de mesmo sangue. Segundo ele, esse olhar enviesado advém de tempos remotos, desde o início do contato com o branco e a transferência forçada de nossa “civilidade”. Sua explanação tocou num ponto muito interessante, o de que os índios vêm sendo educados para acreditarem que somente o branco pode resolver os problemas, pois é ele quem detém o poder, quem possui a riqueza, quem domina os palácios. Assim, um índio no poder é enxergado pelos seus irmãos como “fora do lugar”, habitante de um mundo que não é o seu. “É o homem branco quem possui o poder, desde os missionários até os patrões”, afirma Baniwa.

Perguntado se algum representante dos índios já havia sido eleito vereador e realizado um trabalho decepcionante, o que também poderia ser umas das razões para tal desconfiança, o político disse que cerca de dez indígenas alcançaram a vereança no município anteriormente, e que muitos desses acabaram sendo absorvidos pelo grupo político no poder à época, o que de fato desagradou a comunidade indígena. No entanto, em sua visão, esse fato não é decisivo para o sentimento que vigorava até então.

Vigorava, pois de acordo com o vice-prefeito a população readquiriu a capacidade de ter esperança após a vitória dos novos mandatários. “Isso também aumenta nossa responsabilidade, pois podemos fazer com que o trabalho continue ou fazer com que nunca mais nenhum de nós seja eleito”, reconhece Baniwa.

Perguntado sobre os principais desafios do município, André Baniwa novamente surpreende. “O mais urgente é a água”. Mas como? Um lugar como esse, cercado por rios caudalosos, enfrentando problemas com água? Pois de acordo com o vice, em muitas casas da cidade as torneiras estão secas, fruto do péssimo trabalho da Companhia de Saneamento do Estado do Amazonas (COSAMA).

Outros pontos prioritários apontados pelo vice-prefeito foram saneamento básico, geração de energia, meio ambiente e educação. Neste último ponto a falta de professores na rede pública de ensino foi classificada como gravíssima por Baniwa. Retrato exato do que acontece em outras partes esquecidas de nosso país.

A coligação vencedora, composta pelos partidos PT, PV, PP, PPS, PDT, PSB, teve uma base de apoio fincada no trabalho social. Houve uma articulação bem montada entre as várias organizações de dezenas de comunidades indígenas pertencentes a São Gabriel da Cachoeira, ativistas de movimentos ligados à educação e saúde, mulheres e jovens. Entra-se aqui em um terreno movediço.

Tanto o prefeito quanto seu vice são oriundos da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN), entidade fundada em 1987 para lutar pela demarcação das terras indígenas no Rio Negro. A FOIRN se declara sem vínculo partidário. Mas é óbvio que a política já dominou a Federação. André, quando questionado sobre a importância da entidade no jogo político local, confirmou que ela é um ator de peso. Depois desconversou, dizendo que o objetivo é aplicar no poder público as políticas de êxito comprovado implantadas e executadas pela Federação. Mas a impressão é que existe uma entidade, a princípio sem fins partidários, que se transformou numa ferramenta propulsora de campanhas, podendo inclusive oferecer apoio financeiro, como acontece com outras entidades que adentram a política. Repito, isso é uma impressão. Sei que o jornalismo não permite impressões, apenas fatos, mas não me furtarei de expressar uma realidade latente. Caso seja verdade, os danos futuros e as práticas nada aceitáveis inerentes a esse xadrez lamacento virão à tona, inevitavelmente. Torçamos para isso não ocorra.

Segundo relatou André Baniwa, São Gabriel da Cachoeira não possui um núcleo econômico ativo. A cidade gira em torno dos salários dos militares e dos servidores públicos dos poderes municipal, estadual e federal. Questionado sobre possíveis alternativas, o vice-prefeito não ofereceu uma resposta alentadora, exemplificando ações passadas fracassadas como a organização da produção agrícola das comunidades indígenas. “Essa situação dá até vergonha”, admite Baniwa. O turismo, que poderia tornar-se uma alternativa viável, depende da vontade do poder estadual, que se mostra mais preocupado em catapultar o setor em Manaus e algumas cidades que se localizam em sua órbita de influência.

Mesmo reconhecendo a precária situação econômica da cidade que ajudará a administrar, Baniwa não considera São Gabriel um município pobre. “Você pode olhar, em qualquer comunidade os índios têm o que comer, têm casa, têm sua canoa. Se for olhar o consumo anual de peixe por essas pessoas, são toneladas, que transformadas em moeda é muito dinheiro. Fome ninguém aqui passa”, disse, fazendo uma comparação que não justifica ou esconde o problema da falta de geração de renda.

Por fim, André Baniwa definiu assim o que é nascer e crescer em São Gabriel da Cachoeira: “Nascer aqui é se sentir no lugar certo. Aqui temos nossa história, esse lugar nos explica o mundo, desde a origem da humanidade. Aqui adquirimos nosso conhecimento sobre as regras da natureza. Aqui, nós, índios, estamos no lugar certo”.

Em breve publicarei a segunda parte da entrevista.

2 comentários:

Anônimo disse...

thobias..eu daqui do outro lado do mundo me emocionei com as imagens tao fortes e belas da sua viagem. e fiquei tambem feliz com a entrevista feita. Legal escutar um pouco o que essa populacao tem a dizer sobre os problemas politicos, sociais e indigenas da regiao(algo que me interessa muito!)fico esperando a parte 2! um abraco forte levando um pouco de vento frio para refrescar seus dias abafados!

Sandro Almeida Santos disse...

Parabéns pela iniciativa da entrevista! Os problemas de Sao Gabriel da Cachoeira nao sao tão diferentes de outros municípios interioranos brasileiros, que sobrevivem dos salários de funcinários públicos (civís e militares). Não há muito o que fazer. Os setores produtivo e de serviços são precários de forma generalizada. Barbacena, por exemplo, vive da Aeronáutica instalada aqui e dos salários dos servidores estaduais e municipais. Qdo chega uma nova repartição governamental, é a glória (emprego e renda)!

Fique aqui registrado, também, meu encanto pela paisagem e pela maravilhosa fauna da floresta!!!

Abração