quarta-feira, 22 de agosto de 2007

As Cozinheiras


A história que aqui se desenrolará tem como personagens condutores duas boas senhoras vizinhas de apartamento, habitantes de um prédio qualquer perdido no mar de concreto de uma grande cidade. Ambas dividiam três características. Saíram já adultas do campo para viverem no cenário urbano, eram viúvas e viviam sozinhas e prezavam ao máximo a cozinha. Eram duas cozinheiras excepcionais, daquelas que apresentavam olhos cintilantes quando seus corpos sentiam o calor vindo do fogão.

Felizes, ou não, eram os outros moradores daquele prédio, que dia sim e outro também tinham os narizes encantados pelo maravilhoso cheiro que escapava das casas das senhoras. O ruim é que dificilmente eram convidados a participar das ceias espetaculares que ali se desenrolavam. Mas por que as duas boas senhoras, tão amáveis no trato, que transpiravam carinho e acolhimento, não compartilhavam sua comida com os outros? O que posso dizer é que ali, naquela simples construção de concreto e ferro, se dava uma das maiores batalhas que o mundo já presenciou, uma disputa movida a sal, pitadas de pimenta, assados e cozidos. Sim, há muito elas cozinhavam devido a uma disputa que visava provar quem teria a melhor mão para o preparo de suculentas guloseimas.

Tudo começou com um elogio oferecido a Dona Lulu, moradora do 301, pelo jovem que vivia no 202. Naquele dia, o cheiro era tão penetrante que o rapaz resolveu subir até a casa da senhora para elogiá-la e, quem sabe, conseguir um pouco daquele manjar que ali nascia. Por obra do destino, Dona Izalda saía de casa naquele momento e presenciou a cena. Não há idade para que a inveja aja, ninguém é velho demais para se sentir inferior e assim querer mudar o quadro das coisas. A partir daquele momento, ao cruzarem os olhos, as duas perceberam que adentraram numa batalha sem volta, onde sairia vencedora aquela que provocasse maior salivação na boca de seus vizinhos.

Assim, todos os dias, na virada do dia e no fim da tarde, o aroma de carnes, legumes, massas e quitandas navegava pelo ar, ancorando o pensamento dos demais naquelas mesas. E tanto Dona Lulu quanto Dona Izalda faziam questão de, quando o prato estivesse pronto, sair um minuto pela porta para conferir qual cheiro prevalecia no corredor. Uma guerra velada e cruel. E assim seguiram por anos a fio, cozinhando e cozinhando compulsivamente, realizando verdadeiras obras da arte culinária. O que faziam com a comida era uma incógnita, pois é de se duvidar que conseguissem comer tudo sozinhas. O interessante é que mesmo em busca da aprovação dos convivas, nenhuma das duas senhoras jamais convidou alguém para um banquete. Eram duas sádicas, creio, visto que o que lhes aprazia era provocar a vontade dos pobres mortais devoradores de gorduras saturadas e alimentos velhos e murchos.

E como em toda a guerra, há o dia da disputa da batalha final. E esse dia havia chegado. Era inverno, a tarde já se despedia deixando para trás o céu rósea que precipita o frio. Dona Lulu havia preparado algo que, pensava ela, acabaria de uma vez por todas com a disputa e a consagraria como a melhor cozinheira do prédio. Passou a tarde a enxaguar os alimentos, picá-los, fervê-los, temperá-los, refogá-los. Fazia uma mistura divina de sabores, que exalava o aroma da cozinha de Deus. Realmente, até aquele dia, aquele cozido foi o mais penetrante, e chegou ao ponto de capturar narizes que passavam pela rua. Praticamente imbatível, pensou Dona Lulu.

Dona Izalda sabia que não conseguiria preparar, àquela hora, algo que pudesse rivalizar com o prato da concorrente. A cegueira da fúria então lhe afligiu. Já havia perdido muito na vida, do amor do marido ao carinho dos filhos que não mais a visitavam. Não perderia aquele que era o último suspiro a encher seus pulmões de vida, não deixaria de lado a derrota na área em que se considerava superior aos outros. Pegou a faca mais afiada, que encontrava-se suja de gordura no fundo da pia. Tocou a campainha de Dona Lulu, que ao atender pensou se tratar da rendição da inimiga, ante o tiro de misericórdia disparado naquele dia. Assim que seu corpo ficou totalmente exposto, Dona Isalda enfiou-lhe a faca nas entranhas sem hesitação alguma. Cortou-lhe o abdômen de cima a baixo e adentrou o apartamento da vizinha. Com o corpo deitado na sala e o sangue escorrendo pelo chão, pegou um prato, serviu-se lentamente do cozido, sentou-se e começou a comer. Após a primeira colherada, disse para si mesma, num tom desinteressado:

- Realmente, ela cozinhava melhor que eu.