quarta-feira, 27 de dezembro de 2006

O Sonho do Insone


Quão abafado está este cômodo. Irrespirável. Quatro paredes úmidas e surradas, que quase não guardam mais seu verde original, nos cercam hermeticamente. Uma luz tuberculosa desvenda meu rosto linchado. Não avisto porta alguma desta posição, com certeza ela está atrás da cadeira onde me encontro de pulsos e calcanhares atados.


Não importa, já não posso mesmo ver muita coisa. Meus olhos distinguem apenas sombras em movimento, resultado do extraordinário inchaço em que se encontram. O doce gosto de sangue encharca minha boca e alguns de meus dentes bóiam em seu leito vermelho. Não descreverei em que estado estão minhas pernas ou meus braços ou meus dedos. Seria demasiado enfadonho listar tantas chagas. E confesso ser interessante sentir minhas costelas espatifadas perfurando meus pulmões a cada movimento respiratório. Sempre soube que o tabaco não seria o cruzado de meus alvéolos.

A dor já não me aflige mais. Não sei ao certo há quantos dias estou aqui, mas logo nas primeiras mágoas provocadas pelo acerto de contas meu corpo se encarregou de poupar-me. Creio possuir altos índices de adrenalina ou endorfina ou qualquer outra “ina” produzida pelo organismo aveludando meu cérebro.

Por isso mesmo o mais ardente dos flagelos é a música “What a Wonderful World”, de Louis Armstrong, que emana incessantemente de um som estéreo localizado num canto da câmara. Descobriram que nunca suportei essa música devido aos inúmeros imitadores que a usam em suas apresentações. Sempre invejei os que não escutam. Estes estão à salvo!

Dez justiceiros respiram de maneira tranqüila ao meu redor. Entretêm-se com as cinzas de seus cigarros, com os estalos provocados pelo manuseio de suas armas e, principalmente, com o meu espancamento, que espalha gritos e risadas pelo enevoado ar do lugar. Fazem um revezamento, e de par em par dispõem de um determinado tempo para a diversão. Eles são bem criativos e guardam uma boa sorte de ataques que vão desde socos, pontapés e cortes até pauladas nos joelhos e queimaduras na sola do pé. Demonstrando nobre gentileza, oferecem-me cerca de uma hora de descanso após cada sessão.

De novo. Mais uma pancada acaba de entorpecer-me. Estou completamente grogue. Que maravilhosa sensação a de sentir o mundo caminhando com um pouco mais de vagar. Enfim livrei-me do ritmo frenético desse século que retrocede.

Neste torpor iracundo um turbilhão de pensamentos desconexos invade minha cabeça. Jesus teria desenvolvido uma unha encravada devido as suas intermináveis caminhadas? Quantos falsos sorrisos foram-me oferecidos até hoje? È possível colar a porcelana quebrada do coração com a saliva alheia? O peixe fisgado se ressente de sua gula? Qual a cor de minha preferência: a preta ou a branca? Devo morrer vivendo ou viver morrendo? Por que não fugi enquanto ainda tinha tempo? Quantos litros de água se perderam no gotejar eterno daquela torneira? Como seria o sexo dos extraterrestres?

Descubro que, ao contrário do que dizem, a vida não se explica no último suspiro.

Escuto a decisão de um deles. Um revólver marca minha nuca. Preferiria um tiro no céu da boca, que atravessaria retilíneo meu crânio. Milésimos de segundo antes de a pólvora queimar minha pele, um último pensamento me confere otimismo: as baratas sempre morrem de pernas para o ar.

Nosso País


A rotina é miserável. Atados em um nó social, não nos movemos. Progressivamente nos acomodamos com a normalidade absurda, transformamo-nos em cúmplices. E não há horizontes mais iluminados à vista.

O nosso Estado é um assassino. Mata direta e indiretamente.

O nosso Estado mata através de seu braço coercitivo e que possui a legitimação do uso de violência, a polícia. Infiltrados nos quartéis existem grupos de extermínio, há os conluios com homicidas e traficantes, onde a liberdade é posta a venda, torturas e truculências que geram mais fúria que disciplina, execuções sumárias de suspeitos, às vezes culpados, muitas vezes inocentes, tiros e mais tiros entre escassas palavras.

O nosso Estado mata quando não mostra nenhuma disposição para superar o descaso quanto ao essencial serviço de saúde pública. Cidadãos morrem em corredores de hospitais, filas de atendimento, morrem por falta de remédios que não têm condições de comprar e que deveriam ser fornecidos pelo governo, morrem sem sequer ter acesso a algum tipo de atendimento público de saúde.

O nosso Estado mata quando permite que a população circule em vias de transporte tão precárias e inseguras como as nossas. Talvez em números absolutos, o número de mortos em acidentes rodoviários não cause mais espanto na opinião pública. Mas pensemos como seria perder um ente próximo em conseqüência de um mísero buraco. Há recolhimento de impostos para manutenção de estradas, e se estas se encontram em estado de degradação absoluta, sabemos perfeitamente quem é o responsável.

O nosso Estado mata quando permite que o patrimônio público seja pilhado por repugnantes insetos sorverdores. Recursos essenciais ao povo que pagam refeições em restaurantes da grã-realeza, que compram máquinas automobilísticas oníricas, viagens recheadas de azuis-turquesa, palacetes esplendorosos, tecnologias ofuscantes, êxtases vazios.

O nosso Estado mata quando se mostra ineficiente na conservação de nosso ambiente, não só o natural, mas também o urbano. A água vai progressivamente sendo infectada; a massa verde cada vez mais cede espaço à ganância; o ar das cidades é sujo, carregado, intoxicado; aglomerados escancaram a lamúria da pobreza.

E assim, enquanto vários secam pouquíssimos estão vivendo no éden. Paraíso falso, na realidade, mas que agride e espanca os Josés, Joões, Marias e Madalenas e que progressivamente começa a atingir as Lúcias, os Eduardos, as Carlas e os Leandros, a classe que habita as redondezas dos altos postos da pirâmide da vergonha.

Continuaria por vários e vários parágrafos. Mas o que escrevo já foi incessantemente falado e já é enfadonhamente conhecido. Faz parte de nossa vida, do transparente cotidiano.

A desilusão reside aí. Nosso povo canta, lacrimejante, a vitória de um atleta, evoca o hino nacional e dele se apossa, dele se nutre. Retorna ao lar, liga a televisão e observa, enraizado, a caixa negra vomitar chagas de nossa sociedade. A reação é parcimoniosa, um ato de medíocre passividade.

Os jovens buscam tão só as frivolidades, as sensações rápidas e intensas, o mundo de plástico, o estéril, a alucinação coletiva da inércia, o deserto que nos oferece o infinito, o impossível, o ilimitado. Turvam suas mentes e caem em profundo estado de flutuação, sendo posteriormente incorporados e esvaziados.

Quem possui, logicamente não quer a mudança. Quem não possui não reage, por incapacidade ou por covardia ou pelos dois. Quem teria a capacidade de algo mudar, se abstém.

E assim seguimos adiante, pisando em falso, pensando em nada, ruminando a vida. Que beleza é o nosso país.

Os Ingressos e o Brasil



Caros leitores, peço que leiam com atenção as próximas frases. Elas foram retiradas de uma matéria veiculada no jornal Folha de S. Paulo, do dia 19 de setembro. A matéria trata do preço dos ingressos cobrados no show de um renomado artista internacional. Quanto? R$ 300.

Retirei algumas declarações dos entrevistados, que respondiam se consideravam normal, no Brasil, pagarem tamanha quantia por um show. Aí vão algumas respostas:

“O Brasil é assim mesmo. A gente não tem culpa que muitas famílias vivam com R$ 300 por mês. Sei que soa preconceituoso, mas... Acho até bom que seja meio caro; quando a balada é muito barata, eu desconfio. Aqui a gente só vê pessoas mais bonitas e educadas”. Administradora de empresas, 22 anos.

“Sei que R$ 300 não é pouca coisa, mas dinheiro não é problema para mim. Tudo depende da base de comparação. Ao menos uma vez por semana, gasto isso numa balada”. Empresário, 24 anos.

Não foi identificada a profissão deste entrevistado de 23 anos, que disse: “Eu tive sorte de nascer assim. Tenho noção do absurdo, mas prefiro me enquadrar no sistema”. Provavelmente ele não trabalha.

“Se sou mais especial que os outros, não sei. Mas as pessoas não têm culpa de ter grana”. Publicitário, 37 anos.

Sim, o publicitário não tem culpa de ter “grana”. Mas será que ele tem culpa pelos milhões de brasileiros que trabalham de sol a sol para, com sorte, receberem R$ 300 reais por mês?

Sim, dinheiro não é problema para o jovem e próspero empresário. Mas será que é problema para ele um menor, drogado e armado, atravessar sua testa com uma bala de revólver e roubar-lhe míseros R$ 20, R$ 30?

Sim, a administradora tem o direito de pensar que um show ao preço de R$ 300 propicia um ambiente asséptico, pomposo e civilizado. Mas será que quando circula pelas ruas da cidade, quando se depara com a realidade suja, mal educada e feia, R$ 300 reais podem transportá-la instantâneamente para o conforto aveludado de seu mundo?

A melhor. O jovem, parido pelo ventre da riqueza, tem toda a liberdade de se adequar ao sistema. Mas será que ele gostaria de se adequar ao sistema estando do outro lado, lutando não pela chefia de uma multinacional, por um carro importado, por férias em paraísos tropicais, e sim por um prato de comida, uma peça de roupa rasgada, pela sobrevivência?


Partindo destas declarações, deciframos um dos problemas que ancoram este país. Possuímos ricos que vivem dopados, alucinados, construtores de um mundo que reflita a sofisticação européia e o consumo exacerbado americano em solo tupiniquim.

Sentem vergonha de serem brasileiros e consideram os pobres subumanos, selvagens que não merecem mais que as sobras, que devem se curvar ante a imponência obtida através do dinheiro. Vivem sob a égide da hipocrisia, sentando-se no lamaçal com um alvo lençol de seda a proteger suas nádegas.

Estas pessoas serão os futuros comandantes da nação, seja direta ou indiretamente. Eles fazem parte da elite econômica, a condutora da carroça Brasil. Há tempos esta carroça tenta transformar-se em um carro. Creio que dependeremos da tração animal ainda por um longo tempo.

O Vôo



Caminhava de maneira apressada, com a respiração bastante ofegante. Levava um cigarro entre os dedos. Os olhos apresentavam-se arregalados, tensos, atentos a tudo. A boca mantinha-se fechada, porém trêmula.

Desde a manhã notara algo estranho. Um sentimento que lhe afligia, que comprimia-lhe o peito, sufocando-o. Num primeiro momento não deu importância ao fato. Possuía o coração amargurado de um ser miserável e solitário, e assim, imaginou aquele dia como apenas mais melancólico que os outros.

Subitamente sentiu uma dor insuportável em sua espinha dorsal. Tombou, e sua face afundou em uma poça que se formara devido à leve chuva que descia dos céus. Seu corpo iniciou uma série de espasmos, a dor era insuportável e a saliva escorria-lhe pela boca. Seus olhos reviraram-se, e agora miravam a alma.

Já inconsciente, iniciaram-se os delírios. Passou a ver uma série de imagens familiares, como que em um filme. Pequenos trechos de sua vida, que se sucediam, não de maneira aleatória, mas seguindo a linha cronológica de sua existência.

Acompanhou toda sua trajetória, desde os primeiros passos até o momento em que desfaleceu. Uma viajem que possibilitou-o raciocinar sobre o que já fora e no que agora se transformara. Um jovem tranqüilo, amistoso, idealista e amante da vida, tornou-se um adulto sem expectativas, rancoroso, decepcionado, espremido pelo mundo, que se valia de safadezas para viver.

Não mais lhe agradava a presença de pessoas ao seu redor. Se as suportava, era porque necessitava dos tolos para as suas trapaças. Reservava o asco tanto para os maus quanto para os bons, e mais especialmente para os bons, devido à ingenuidade destes. Concluiu que um mínimo de afeto ainda restava na relação com a mãe, nada que o comovesse, todavia.

Antes do ocorrido, pensava ser ele um diferente, que não se deixava iludir pelo mundo, um marginal. Uma pessoa fora do eixo, que era seu próprio todo. Daí o seu desprezo pelo resto. Descobriu que na verdade nunca chegara a ultrapassar a barreira do medíocre, do vazio, das encenações. Uma farsa autêntica.

Compreendeu que sempre teve consciência de suas maquinações, e que devido à covardia, nunca ousou abandoná-las. Esse pensamento atingiu-o de maneira incisiva e mortal. Refletiu que simplesmente era só mais um, e nada que fizesse mudaria essa realidade.

Os delírios se foram. Aos poucos foi recobrando a consciência. Lembrava-se de todo o ocorrido, de todas as imagens que lhe vieram à mente. Levantou-se, caminhou aproximadamente por trezentos metros. Parou e começou a olhar de maneira fixa para a água que corria abaixo. O pensamento encontrava-se distante. Subiu, primeiro o pé direito, seguido pelo esquerdo, pois era destro. Um segundo antes do pulo, esbravejou:

− Enfim, voar!

E pulou, sorrindo. Estava livre do peso da verdade.

sexta-feira, 15 de dezembro de 2006

João


João nasceu na terra batida do morro, em meio às escadarias da miséria e os barracões cujos tetos encobrem a indecência de um país. O menino nunca recebeu muitos cuidados, o pai era inexistente, literalmente, e a mãe desdobrava-se para atender as demandas de toda prole, composta por oito filhos. De idade intermediária, não carregava a responsabilidade dos mais velhos nem os caprichos dispensados aos caçulas.


Só restava a João pensar sobre sua condição de existência. E ele, presenteado com a potência da dúvida e da crítica, passava horas a raciocinar sobre o porquê de seu mundo ser escrito daquele jeito. Não se contentava com explicações rasteiras, fossem elas oferecidas pelos seus ou pelos pensadores do asfalto, que acreditavam analisar soberbamente sua desgraça.

Não, aquilo não ocorria simplesmente pela desigualdade social, pelas forças do mercado globalizado, pela ganância do dinheiro, pela falta de estudo, base familiar ou incompetência pessoal. Não, a sua tristeza era um castigo, concluía o pobre garoto. Um castigo por algo que havia feito em outros tempos, em outra vida na qual conheceu o mundo vestido de ouro, iluminado pelo Sol amarelo e radiante de fartos prazeres.


Era natal, e João, então com quatorze anos, imaginava solitário qual presente iria receber. Mas o próprio sabia que aqueles pensamentos eram pura fantasia, pois nunca havia ganhado nada, nem mesmo um mísero feliz natal. Por que aquele ano havia de ser diferente? Por nada, apenas ansiava aplacar aquela maldita sensação de vazio, de um abandono frio, concreto e dilacerante. Aceitava o castigo que lhe fora imposto, e aceitava calado, resignado, afinal, lutar contra o juízo divino não era tarefa para ele. Não estava sozinho, sempre foi sozinho. A sua única e constante companhia era a solidão.


Ao assistir a televisão João deparava-se com a maravilha de plástico criada pela propaganda. Famílias felizes, crianças saudáveis e sorridentes brincando num gramado esmeralda, todas se esbaldando com seus novos e suculentos brinquedos. Ao fundo, uma imensa casa de arquitetura moderna cuja garagem sempre guardava um belo carro. O efeito do vento, que balançava suave os lisos cabelos daquela gente estranha, também era percebido pelo garoto sujo e largado. Mas o pior eram as propagandas de alimentos, que vomitavam em sua cara uma mesa farta, com assados brilhosos e bebidas elegantes servidas em cintilantes copos de cristal. O menino nem se lembrava da última vez que havia comido carne.


À noite, João decidiu ficar sozinho, até mesmo porque se quisesse a companhia de alguém não a teria. Postou-se numa esquina qualquer de seu morro. Cheirou por completo sua lata de conserva entupida de cola. Sonhou com tudo que sempre desejou, pois havia encontrado a felicidade fugaz do torpor. E assim permaneceu por toda a noite, imaginando quão agradável era a vida no asfalto.

Adormeceu na terra, com seu cabelo desgrenhado, suas unhas sujas e seu rosto desfigurado pela pobreza. Não queria muito, não, buscava apenas um caminho que lhe fornecesse a esperança. Em sua face, ao invés do sorriso vistoso e dos olhos brilhando de alegria das crianças bem nascidas, escorria apenas um delgado e triste fio de lágrima, que representava o oceano de desilusão que era sua existência.

terça-feira, 28 de novembro de 2006

A Universidade que Entristece


Inicio este texto com uma pergunta: quantos de nós já presenciamos um colega de universidade bradar impropérios contra seu próprio curso, ou mostrar-se abatido e infeliz com o que faz, assumindo uma posição passiva em sua vida acadêmica? Creio que a maioria já se deparou com essa situação, ou até já a viveu.

Assusta hoje um fenômeno que, infelizmente, é cada vez mais recorrente, prejudicial aos jovens que dispõem de estrutura financeira e psicológica para estudar. É quase que obrigatório adentrar em alguma instituição de ensino superior, na busca pela qualificação que propiciará, pelo menos teoricamente, um posto no mínimo razoável no mercado de trabalho.

Sem um diploma de graduação, as chances de se conseguir um emprego relativamente rentável e satisfatório são mínimas, praticamente inexistentes. Esse quadro se deve à era mercadológica, ávida pela produtividade robótica, pela eficiência maquinal, pela especialização que nubla uma visão mais ampla e complexa da realidade. Rubem Alves, tratando da escola como um todo, valeu-se de uma metáfora ímpar para descrever esse quadro. Sua visão é a de que as instituições de ensino transformam os alunos em quibes, colocando-os na estufa do mercado, à mercê dos olhos e do gosto de quem detém o monopólio do trabalho.

Esta nova configuração gera imperfeições grotescas, a começar pela mercantilização do ensino. Faculdades são abertas em ritmo frenético, cardumes de novos alunos são fisgados como que num navio pesqueiro, e não há a preocupação por parte das escolas de realizarem aquilo a que deviam se prestar: a formação humanística do ser, qualificando não somente sua técnica, mas também sua consciência. É raro encontrar verdadeiras universidades atualmente. O que se vê são edificações, algumas sustentando uma suntuosidade faraônica, motivadas única e exclusivamente pelo lucro.

No que se refere ao aumento crescente de alunos matriculados em universidades e faculdades, pode-se descobrir uma outra anomalia. A pesquisa, suposta engrenagem de qualquer instituição de ensino superior, não é realizável por qualquer um. Não basta querer pesquisar, é preciso saber pesquisar, é necessário dispor de olhos artísticos para arrancar dos bastidores da vida fenômenos despercebidos pela maioria, para assim expô-los de maneira inteligível. É legítimo afirmar que todo grande pesquisador possui um dom, assim como qualquer músico, fotógrafo ou pintor.

Uma minoria foi gracejada pela natureza com esse dom, mas como todos se vêem compelidos a adquirir um diploma de graduação na busca por um porto seguro, acabam se perdendo nos corredores universitários. Sentem-se deslocados, desmotivados, navegantes de uma eterna marola que não os levará a águas mais profundas e agitadas. Formam-se, rasamente, sustentam a jornada diária do labor, ruminam o dia a dia, seguem o curso que alguém lhes traçou. Talentos variados são esquartejados por essa imposição irresistível.

Não vislumbro soluções para tais distorções, talvez algumas marginais, mas nenhuma que atinja o problema de maneira completa. O modelo de vida que enlouquece mentes e corações é algo enraizado e já naturalizado, e só será modificado com graves fissuras ideológicas, sociais e econômicas. Ao menos já compreendo melhor meus colegas reclamões e a mim mesmo.

sexta-feira, 10 de novembro de 2006

O Mosquito


Alguns dizem ser o leão. Outros, o búfalo selvagem africano. Existem ainda partidários do tigre, do tubarão, do rinoceronte, do urso ou até mesmo do ser humano. Eu, modestamente, elejo o mosquito como o ser mais corajoso e realizado que já habitou nosso planeta.

Pensem comigo. Num vôo que a primeira vista pode parecer desordenado, cambaleante, ele se aproxima. Alia coragem à sagacidade, pois só é realmente percebido quando toca nossa epiderme. O mosquito elabora um plano, nos rodeia e nos rodeia incansavelmente, e só depois da certeza de estar invisível, aterrissa.

Inutilmente, com movimentos tão morosos que chegam a ser patéticos aos olhos do pequeno inseto alado, tentamos golpeá-lo. Para o mosquito, nosso tamanho infinitamente superior não é problema. Ele não nos teme, pois tem a certeza de sua vitória. Armadilhas, por mais que nos esforcemos, não são suficientes para detê-lo.

Nossas mãos vão passando uma, duas, três vezes, rasgando o ar, e nada. O ínfimo ser não se deixa abalar. Insiste, vai e volta, até conseguir nos possuir. E ainda se posta de maneira jocosa, ridicularizando-nos, esfregando suas diminutas patas dianteiras assim como nós esfregamos as mãos quando vislumbramos algo de bom. Um autêntico sarcástico.

Ingenuidade de nossa parte achar que somos os habitantes do mais alto andar na evolução das espécies. A começar pelo fato de não possuirmos a habilidade do vôo. Bem, podem surgir questionamentos com relação aos pássaros, mas estes são medrosos, reticentes quanto a nossa presença. O menor sinal de aproximação já é motivo para alvoroço, para fugas ridículas. O mosquito não, pelo contrário, faz questão de vir ao nosso encontro, de nos explorar, de se empanturrar com nosso sangue ou com nossos alimentos.

No que se refere à reprodução, outro show do artrópode. Nós somos obrigados a encarar rodeios, teatros, uma série de encenações para enfim alcançar a cópula. O mosquito não, e justiça seja feita, todos os outros animais não. O ato é objetivado, e melhor ainda, estendido a várias parceiras num curtíssimo intervalo de tempo. Maravilhoso.

Para encerrar a discussão e confirmar a predominância do mosquito, este só possui uma semana de vida. Não é obrigado a permanecer nesta penosa jornada a que somos submetidos, não trabalha, não envelhece. Morre ainda no vigor da juventude e sua vida é feita única e exclusivamente de prazeres que são o vôo, o sexo e a apreciação de guloseimas mil. Ele não divaga, como agora o faço, não necessita de batalhas para provar sua bravura, não padece de traições ou crises psicológicas. Realmente um ser exemplar, pois simplesmente vive.

Se a oportunidade me for oferecida, quero ser um mosquito numa vida futura e simplesmente me alimentar, voar e amar!

sexta-feira, 3 de novembro de 2006

Eles



Viviam nas planícies à procura do próximo dia. Aprenderam a caminhar distâncias magníficas, em grupo, ordenadamente, numa cadência em sintonia com a sobrevivência. Aprenderam a matar a carne vermelha, a manipular a luz ardente, a conduzir o crescimento do verde, a construir cavernas.

Aprenderam a repartir, pois repartindo todo o conjunto agregaria força. É um raciocínio lógico e primário: se houver equilíbrio entre as potências individuais, têm-se uma bela média geral. Se a composição for de alguns extraordinários acompanhados de vários medíocres, a média geral será inadequada para a violência do mundo. O equilíbrio não produz nem super-homens nem ratos, simplesmente cria seres corajosos e preparados o suficiente para a batalha do viver.

Aprenderam a emitir sons organizados, memorizados previamente, rapidamente compreendidos e que impulsionaram o seu potencial futuro. A denúncia do risco inato e a capacidade de câmbio intelectual foram sobremaneira aceleradas.

Aprenderam a identificar o medo no rosto alheio. Descobriram que as fraquezas, antes soterradas em cavernas singulares, eram coletivas. Conseguiram então manipular o poder através da persuasão, e não mais somente da imposição oblíqua e ligada à matéria. Aqui se iniciou o mal previamente arquitetado, fruto de uma cadeia lógica de raciocínios. A razão ultrapassou o barrento e primitivo instinto.

Aprenderam a arte de amar, aquela que se preocupa com o prazer e não é somente uma humilde serva da perpetuação natural. Criaram a conquista, o flerte esguio que vive nas esquinas dos olhares, escravo irrevogável da simulação. A atuação do amante não carrega em seu corpo a sinceridade, tudo não passa de uma atuação, onde as virtudes se fazem tão brilhantes como o Sol e os defeitos são trancafiados no porão da alma.

Aprenderam ainda muito mais. Mas não aprenderam o essencial. Aqueles seres não concluíram que eram insignificantes, que não eram sagrados, que não podiam se considerar únicos e puros. Não conseguiram admitir que o apodrecimento da carne é inevitável e simplesmente marca o fim de um ciclo biológico, nada mais.

Agora, vivem embasbacados à procura do inalcançável, a glória da eternidade. Continuarão a procurar, sempre, exaurindo sua energia em algo inócuo. Se todos se preocupassem em encontrar a glória aqui mesmo, na terra marrom e espinhenta, suas mentes seriam mais produtivas para a evolução do todo. Assim, não destruiriam o que aqui germinou confortando-se com a maciez de um improvável firmamento.

domingo, 17 de setembro de 2006

Impressões Coletivas


Costumo tomar um ônibus todos os dias, atividade obrigatória para que eu chegue ao inevitável trabalho. Confesso que não me desagrada subir as escadas dos coletivos, desde que estes estejam razoavelmente vazios, com assentos disponíveis. Infelizmente, isso nem sempre ocorre, coisas da vida e de governos ineficientes que não conseguem racionalizar e qualificar o transporte público. Mas não é isso o que quero discutir.

Quero falar da rica experiência que um prematuro e incapacitado analista do teor humano tem, quando embarca nos ônibus urbanos. A variedade de faces, olhares, trejeitos, preocupações, sorrisos e até de vômitos é incalculável. Num ambiente de poucos metros quadrados, os animais humanos se digladiam, se congratulam, se admiram, se respeitam, se traem.

A primeira figura a ser avistada é o motorista. Parece existir uma fábrica de motoristas de ônibus em série, devido à similaridade física e psicológica entre a maioria deles. O bigode está invariavelmente presente, assim como a barriga avantajada. Os óculos escuros também encontram bastante aceitação, até mesmo pela necessidade de se esquivar dos efeitos do sol. Falam alto, fazem das vias públicas territórios particulares, são impacientes, muitas vezes gostam de conversar com o seu parceiro de labuta, o trocador. Após alguma freqüência de embarques, se predispõem a balançar a cabeça, apenas um raso cumprimento.

O trocador personifica o sistema financeiro do microcosmo do ônibus. É ele quem gira o ouro, quem concretiza o escambo, é ele quem marca o lucro. Sua piedade não pode ir além de sua mente, ou seja, sem dinheiro, sem deslocamento motorizado. Simplesmente um reflexo do todo econômico. E não é falsa a idéia popular que caracteriza o seu bigode, ralo e desarmônico. Grande parcela realmente apresenta os famosos “bigodinhos de trocador”.

Quanto aos usuários, careceria de ter à disposição a Amazônia em papel para descrever todos os que incessantemente entram e saem por aquelas portas. Mas é possível traçar o comportamento de alguns mais numerosos.

Existem aqueles de olhares perdidos, fixos no nada. Creio que estes estejam a pensar sobre si próprios, sobre seus questionamentos, seu destino, seus erros, suas tristezas, frustrações, sua incapacidade. Os seus olhos dizem tudo, tamanha a desilusão quanto ao presente. Calados, não se intrometem em nada e não gostam de invasões, preferem seguir o percurso pensando, remoendo os arranhões que o viver lhes infligiu.

Outra categoria é a dos deficientes, que surpreendem na quantidade quem é neófito em tomar ônibus. São vários, com problemas diversos, alguns difíceis até de serem compreendidos. Mas todos procuram sempre demonstrar a auto-suficiência, a superação, o drible sobre a rasteira aplicada pela natureza. Assim, exalando a luta e a superação, conseguem sentirem-se superiores. É legítimo que ajam assim, mesmo que, às vezes, apenas insinuem uma grande fraqueza, a dissimulação, camuflagem dos demônios que espetam nossos pensamentos.

Não poderia deixar de citar as moças sorridentes, que apreciam a troca de olhares vulcânica, quente, sem-vergonha, conquistadora. O flerte em movimento, o balançar das ancas em qualquer solavanco, o roçar da pele na passagem para a descida. Não sabemos o nome um do outro, mas isso não atrapalha, pelo contrário, desnuda o desejo e nos torna audazes, desafiadores da moral frígida e castradora.

Por fim, recordo-me dos gentis. Pobres criaturas, que pelo bem coletivo sofrem, voluntariamente, as queimaduras da vivência. Permitem que todos subam no ônibus antes deles, o que geralmente os deixa apoiados nas próprias pernas por toda jornada. Frequentemente oferecem o lugar a pessoas mais fortes. Insistem em manter um sorriso permanente, de falsa harmonia com o outro, antinatural. Frequentemente são roubados pelos trocadores, pois é raro entre eles conferir o troco. Bem, não que sejam estúpidos ou qualquer outra coisa deletéria, simplesmente não se adaptaram a viver no meio selvagem das cidades.

Existem vários outros espécimes, mas o respeito ao espaço me constrange a continuar. Não retiro daqui nenhuma conclusão sobre nada. Apenas descrevi um pouco de minha rotina, que acredito não ser muito interessante. Mas, apesar de tudo, ainda consigo descrevê-la. Sinal de que não estou totalmente dominado, pois, quando chegamos ao estágio da cegueira, o doce químico do tempo entre o acordar e o dormir nos mata.

segunda-feira, 21 de agosto de 2006

O Delicioso Sabor de um Porco



Era um casal como todos os outros que caíram no redemoinho da rotina. Às vezes brigavam, se ofendiam, despejavam insultos que no fundo queriam ser ditos há muito. O amor era morno, feito mais por obrigação que por prazer, rápido e sem suor. O que ainda os unia, obviamente, eram os filhos, três crianças com idades entre três e sete anos. Viviam numa cidade de tamanho médio, onde os habitantes muitas vezes não se cumprimentam na rua, mas todos sabem quem é quem.

O marido trabalhava numa fábrica de lâminas de aço. Era freqüentador assíduo de bares e prostíbulos, alcoólatra, desligado do mundo, conectado ao copo e às raparigas. Não usava preservativos no trato com as prostitutas, e isso foi o início da ruína de seu casamento. Certa vez, contaminou a esposa com uma doença venérea, fato que tornou impossível a manutenção da hipocrisia monogâmica naquele lar. Depois disso, a distância entre os dois transformou-se num abismo intransponível.

A esposa, como mandava o figurino, cuidava da casa, dos filhos e da vida alheia em sua vizinhança. Masturbava-se como nunca para suprir seu desejo, que sempre foi intenso. Passou a se interressar por Carlos, seu cunhado, presença freqüente naquele lar. Na verdade ela nunca havia saboreado realmente o casamento, pois este se deveu a uma gravidez inesperada. Mal sabia que o matrimônio, seu redentor ante os olhos das ruas, tornar-se-ia seu frio e impassível executor.

Num sábado, pela tarde, Carlos bateu à porta em busca de seu irmão. Ela o atendeu trajando uma camisa branca e um minúsculo short que expunha generosamente suas belas pernas e sua bunda empinada. Disse que o marido estava no bar e convidou seu cunhado para uma xícara de café. Claro, o convite continha primeiras, segundas e terceiras intenções.

Conversavam sobre futilidades quando inesperadamente a mulher arrancou a camisa e atirou-se nos braços de seu cunhado. Ele reagiu tentando evitá-la, afastando-a com certa violência. Ela voltou a tentar abraçá-lo, desgraçadamente a porta se abriu.

O marido entrou pela sala e presenciou a cena. Sua mulher, com os seios à mostra, próxima, muito próxima ao rosto do irmão. Sua feição exibia um misto de perplexidade e ódio, seus olhos refletiam a silhueta da morte. Não houve tempo para explicações, ele não escutou os apelos de Carlos e muito menos os da “vagabunda”, única palavra que repetia nervosamente. Sentiu-se pequeno, rejeitado, humilhado. Era como se de repente o que nunca foi valioso passasse a comprar até mesmo sonhos.

De arma em punho, apanhada com voraz velocidade em seu quarto, fez com que se ouvissem seis estampidos. Quatro tiros se acomodaram na cabeça e no tronco da esposa, dois se enraizaram no olho esquerdo e no pescoço do irmão. Agora dois corpos coloridos de sangue ocupavam o chão da cozinha. Pegou uma faca de bom fio e os partiu em pequenas porções, calmamente.

Havia assistido a um filme de gângsteres, onde aprendeu que os porcos devoram facilmente a carne e os ossos humanos, só não conseguindo digerir os dentes. Foi até uma propriedade rural nas redondezas da cidade e comprou um suíno de bom tamanho, rosado, para que este degustasse as provas de seu crime. Acomodou-o no quintal. Planejou matá-lo no natal, que chegaria dentro de dois meses. Os dentes foram posteriormente jogados numa caldeira da fábrica onde trabalhava.

Contou à polícia a crise pela qual seu casamento passava, adicionou que desconfiava em larga medida de um romance entre sua mulher e seu irmão. Inventou pequenos fatos que alimentavam suas dúvidas. Concluiu que eles fugiram para algum lugar distante a fim de viverem seu relacionamento às abertas, deixando-o com as crianças e a amargura da traição. Nem a polícia nem as famílias conseguiram chegar a uma conclusão concreta. A falta completa de notícias se mostrou estranha, mas não havia outra hipótese plausível para aquele desaparecimento.

Chegado o natal, o traído fez questão de reunir seus pais e os de sua esposa, além de várias outras pessoas de ambas as famílias. Quando o badalar do relógio denunciou a meia-noite, ele foi até a cozinha e regressou com um porco assado, suculento, gordo e brilhante. Todos comeram de maneira exagerada, tamanho o sabor delicioso da refeição. Em meio aos comentários tolos sobre tudo o que havia se passado, alguém, após arrotar, comentou:

- Que tempero maravilhoso Jonas!

quarta-feira, 17 de maio de 2006

O Elevador


Trabalhava como copeira em um prédio luxuoso da cidade. Para chegar ao trabalho, tinha que acordar às quatro da manhã, tomar dois coletivos e ainda caminhar por vinte minutos. Saía de casa sem comer nada, pois a pouca comida era destinada ao café da manhã de seus filhos, mantidos com muito esforço na escola pública da periferia onde vivia. Seu marido há muito a abandonara, se para o bem ou para mal não sabia, violento alcoólatra que era.

Chamava-se Lúcia. Já ultrapassara a barreira dos quarenta anos, porém aparentava muito mais devido ao corpo franzino e encurvado, ao cabelo ralo e desarranjado e à face profunda, vincada e sofrida. Muitas vezes já havia pensado em desistir, mas o instinto materno nessas horas sempre prevalecia.

Num dia qualquer, melancólico como todos os outros, adentrou o hall térreo do rico prédio onde trabalhava e notou que o porteiro, nordestino e desafortunado como ela, não se encontrava em seu posto. Pela primeira vez em sua vida resolveu ousar, ir contra as regras que sempre lhe foram impostas, sentir-se gente.

Em dez anos de serviço, nunca havia apertado o botão do elevador social. Aos subalternos, como de praxe em todos as moradas suntuosas, era reservado o elevador de serviço. Apertou-o agora. Sentiu pela primeira vez a sensação de poder, e gostou.

Caminhou de cabeça erguida elevador adentro, notou um cheiro perfumado que tomava conta do ar. Cheiro das madames, raciocinou. Depois, pomposamente, levou o dedo indicador direito ao número dez do painel, andar em que trabalhava.

A subida iniciou-se e alguns segundos depois ouviu em estalo muito forte, como se algo estivesse se partindo. Mais um pouco e de novo o estranho barulho. Não havia passado do segundo andar e deu-se com a coisa: o cabo de sustentação do elevador estava se partindo. Assim que completou seu pensamento, iniciou-se a queda brusca.

O elevador, juntamente com Lúcia, espatifou-se no fosso do prédio. Amontoaram-se o ferro retorcido e o corpo dilacerado da copeira. Morreu no elevador social, sem ultrapassar sequer o segundo andar.

Os Selvagens


Viviam há muito pelas calçadas da cidade. Marquises eram transformadas em telhados, jornais em cobertores, esquinas em banheiros e a vida seguia sem rumo, sem utopias, sem expectativas. A comida, geralmente sobras, tinha um gosto azedo, gosto de miséria. O sentimento de pertencer à espécie humana já não mais existe, pois em animais haviam se transformado há vários invernos. E como animais, o instinto básico e primordial de sobrevivência era o que os mantinham vivos, o que os impulsionavam. Num belo dia de fome, frio e desespero, o macho dominante do grupo avista uma presa. Mulher, rica e indiferente. Uma presa despreparada, que foi arrastada subitamente para a realidade do mundo após sentir o gelado cano de uma arma em seu pescoço. A caça estava completa, mais um dia de sobrevivência para o grupo estava garantido e mais uma presa, atordoada, refugia-se em sua jaula doméstica e clama aos deuses para que a horrível sensação da morte nunca mais a aflija. E assim chega ao fim mais um dia na selva.

O Primeiro Dia da Vergonha


1° de janeiro de 2003. O suposto dia da redenção, onde um habitante advindo de nossos porões sociais escala impavidamente a rampa, afeiçoado a um alpinista que acaba de conquistar o cume do mundo. Macacões transformaram-se em ternos e palavras de ordem em domesticados discursos. Se antes as mãos eram maculadas pela graxa, agora elas têm o poder de tingir o futuro do Brasil.

A minha frente encontra-se uma revista datada de janeiro de 2003, cuja edição foi toda ela dedicada ao triunfo dos esfolados. Percebo claramente como somos inaptos para analisar o presente. O roteiro da decaída estava ali, disponível aos olhos do mundo, e escusando os contrários histórico-ideológicos, ninguém conseguiu farejar o podre odor da vilania, da corrupção e da ganância desmedida pelo poder.

Era tudo muito colorido, muito eufórico, um caldeirão de esperanças que não é bem-vindo em nenhuma ocasião. O torpor emocional bloqueia a razão e assim a confiança cega guia-nos terminantemente à navalha. A dúvida, ingrediente indispensável na análise de um contexto, investigadora suprema das vielas da vida, era artigo raro no Brasil àquela época. Como exemplo, reproduzo as deslumbradas letras impressas na capa do veículo: “O Brasil que Virá”.

Atento-me agora a duas fotos presentes no interior da publicação. O super-presidente jactava-se num aceno que denotava o futuro. Desembarcando de um carro aristocrático, um Rolls Royce, cercado por uma maré negra de seguranças e tendo o povo a seguros metros de distância, Vossa Excelência subiu o aclive acompanhado por um companheiro-empresário, ou melhor, um empresário-companheiro.
O parceiro de antigas lutas, que ganhou ares de primeiro ministro, vinha atrás, como que na organização e fiscalização de todo o processo, trajando uma longa e cerrada vestimenta escura, metaforicamente perfeita para se esconder as violações morais, legais e éticas que propiciaram a ascenção da estrela.

Ah, o povo! Este também compareceu, predominantemente vermelho, e saudou como nunca a chegada do salvador. Lágrimas, sorrisos, orgulho, revanchismo, emoções incontidas que formaram um espetáculo de louvor poucas vezes oferecido aos deuses. Alguns se jogaram nas águas do lago, que agora sabemos serem inadequadas para o banho de homens dignos. Mas o povo real, apolitizado, tomou a atitude que dele se esperava, uma massa remoída pelo sofrimento que finca vigília aos pés do primeiro profeta disponível.

E então têm-se em outra página a foto de uma rapoza ligeira da política, numa imagem inquietante. As mãos estão posicionadas como que indicando calma e vagar nas conclusões, com as palmas à mostra, num sinal de pare. A sua feição apresenta sombrancelhas levantadas, olhos arregalados, transmitindo perspicácia e atenção com relação aos acontecimentos. A barba longa e branca omite a sua boca, mas confere sapiência à composição final do quadro. Fala-se de quem?
Pasmem, mas a foto é de Fidel Castro, o último revolucionário, ainda hoje comandante da antiga ilha da fantasia, que hoje se transformou na ilhota dos silenciados. Não sei se coincidência ou não, pois Fidel não estava presente na posse e a foto era de arquivo, mas a publicação justamente desta imagem foi o alerta mais gritante de todos. Até o mistério quis nos avisar.

Outubro aproxima-se, a vontade popular novamente será testada e a única coisa que espero é que daqui a quatro anos eu não me depare novamente com uma revista, datada de janeiro de 2007, retratando este mesmo enredo peçonhento e lastimável.

sábado, 13 de maio de 2006

O Craque


O Brasil, sem dúvida, é o país onde quase a totalidade da população compartilha a mesma religião: o futebol. Para nós, seres inferiores não agraciados com a plasticidade da técnica, o perfume da agilidade, a poesia do raciocínio que busca o impossível e o inimaginável, resta matar a sede futebolística nas famosas peladas. E foi numa dessas peladas que presenciei uma obra-prima.

Era uma quarta-feira de noite fresca e límpida, condição perfeita para o desenrolar de um jogo de futebol. Pior para as estrelas, que pela primeira vez se envergonharam, pois tiveram seu brilho totalmente ofuscado por aquele jogador. Uma figura que não despertava qualquer suspeita, que à primeira vista parecia também um habitante do cretino mundo dos quase bons de bola.

A mim coube jogar um pouco mais defensivamente, já que meu preparo físico não anda lá muito apurado. O azar de um milhão de homens parecia ter caído sobre meus ombros, pois o iluminado acabou jogando no time contrário. Após esta partida meu desejo de jogar bola secou como uma poça d´água no deserto, pois percebi a mediocridade de minhas habilidades futebolísticas.

O craque destruiu-me, humilhou-me, ia e vinha quando queria, passava a bola por entre minhas pernas, fazia-a voar sobre minha cabeça numa parábola perfeita, efetuava elásticos, corridas incrivelmente rápidas, cortes secos, chutes bombásticos. Era como se a polícia de uma cidade interiorana, munida de simples revólveres, estivesse confrontando-se com o exército americano numa guerra. Uma assimetria de qualidades absurda.

E, devo dizer, não fui só eu o esfolado, uma vez que todo meu time foi subjugado, torturado, infantilizado e ferido de morte. Um massacre, onde pela primeira vez presenciei um jogo de futebol de um contra sete, um autêntico e acachapante espetáculo.

Mas o tiro de misericórdia ainda estava por vir. Já exausto e ligeiramente contrariado, numa das raras vezes em que consegui possuir a bola em meus pés, arrisquei um lançamento. Obviamente a tentativa foi mal sucedida, e a bola foi rebatida pela defesa adversária na direção do ataque. Meu Deus, aquilo foi incrível!

O chute veio com bastante potência, a bola flutuava nervosa no ar e seguiu galopando na direção do gênio. Pensei: “Essa será impossível de ser dominada”. Ledo engano.

Assim como um amante acolhe sua dama em seu peito, ele estufou a caixa torácica e magistralmente amorteceu a esfera, que iniciou uma subida rente ao seu corpo. Quando esta se encontrava a uns dois metros e meio do chão, geometricamente acima de sua cabeça, iniciou-se o vôo.

Suas pernas bailaram no ar, o corpo parecia estar suspenso por magia, praticamente paralelo ao chão. Não, não foi uma simples bicicleta, e creio que não existam palavras para descrever tamanha magnitude. O chute saiu perfeito, exatamente no vértice das traves, lá onde a coruja dorme.

A bola estufou as redes com violência e depois escorreu macia pela rede, dando a impressão de ter alcançado o gozo supremo devido ao imenso carinho com que foi tratada. Ela permaneceu quieta e brilhante no fundo do gol e ninguém teve sequer a coragem de tocá-la novamente com o temor de maculá-la. A pelada então foi encerrada.

Nós, pobres mortais, fomos arrebatados primeiramente pela perplexidade, que se transformou em admiração, que fez brotar no ar palmas de veneração. Mas uma eternidade de palmas ainda não faria jus à monumental criação.

Parabéns ao craque!

A Dama Fúnebre


“Sou, na verdade, o Lobo da Estepe, como me digo tantas vezes – aquele animal extraviado que não encontra abrigo nem ar nem alimento num mundo que lhe é estranho e incompreensível”. (Hermann Hesse, O Lobo da Estepe)


Estas mal talhadas letras desta vez procurarão tratar da bruma perpétua dos homens; as palavras aqui marcadas terão por assunto algo não desejado e não suportado pela maioria, a solidão.

Estar só, no raciocínio coletivo, invariavelmente significa melancolia, tristeza, fracasso. Mas esta é uma idéia equivocada e confortável, digna de covardes.

A cabeça carente de inteligência, ou de coragem, procura incansavelmente o morno afago da massa. Segue no mesmo rumo do rebanho, das procissões e peregrinações que conduzem a signos vazios. As multidões trazem segurança, porém decepam a autonomia do ser. Quem assim se comporta simplesmente senta-se à margem das correntes da vida e, placidamente, seca.

Somente quando estamos acompanhados da solidão conseguimos realmente conhecer-nos. Seu violento golpe reduz as máscaras a pó, descarna brutalmente nossa face e expõe os grotões de nosso cérebro, colocando-o nu, assim como as virgens das ruas.

São nestes grotões que se refugiam os pensamentos proibidos, os preconceitos, o flanco ardiloso do homem, o egoísmo, a maldade. Sim, deparar-se repentinamente com o lodo humano é sufocante. As veias são entupidas pela náusea e o coração é arrebatado pelo breu. A sensação do abismo aos seus pés ganha forte contorno, e o vôo cadente parece implacável. Esta dama fúnebre chamada solidão, quando se apossa de um espírito frágil, fere de morte suas entranhas e sua mente.

Neste instante se diferenciam os leões dos vira-latas. Os indivíduos de brio aceitam a passagem oferecida pela solidão com destino a podridão, e dela se nutrem, dela extraem sabedoria. Alcançado o âmago do ser, o mundo se revela diante dos olhos. Monstruosidades se fazem normais, desvios ganham direção, a loucura equipara-se à sanidade. O certo e o errado se dissolvem, a pedra muta-se em isopor. É o amadurecimento da mente.

O solitário já não se prende a convenções, esquemas, regras e condutas; ele simplesmente segue seu mapa traçado nas estrelas. E nessa rugosa jornada, enganam-se os que pensam que o amor é impossível, pelo contrário. A solidão exacerba a potencialidade do amor, sentimento que arde como fogo quando não correspondido, mas que definha friamente com a posse do ser desejado.

A companhia de insetos é, na maioria dos casos, melhor que a de pessoas. Viver sem sentir é a concretização do vácuo, e os indivíduos hoje vivem exatamente assim, algo que levanta o asco. Cultua-se o café sem cafeína, o hedonismo sem sexo, a aventura sem risco, o gozo sem prazer. Todos satisfazem-se com migalhas, com fantasias parcas, e simplesmente ruminam seus dias, um a um, até que a percepção chegue tarde demais.

Portanto proclamo: somente a solidão salvará o mundo, é a única que desvinculará os grandes dos transparentes. Por mais paradoxal que possa parecer, somente a solidão trará novamente o gosto ao mundo, o calor, a real sensação do viver.

À Todos Vocês


“Essa infeliz gente propunha planos para persuadir os monarcas a escolherem os seus validos em atenção à sabedoria, à capacidade e à virtude deles; para ensinar os ministros a consultarem o bem público; para recompensar o mérito, os grandes talentos e os serviços eminentes; para exercitar os príncipes no conhecimento dos seus verdadeiros interesses, colocando-os nos mesmos fundamentos em que assentam os do povo; escolhendo para os diversos cargos pessoas qualificadas para os exercerem; além de muitas outras quimeras fantásticas e impossíveis, cuja concepção nunca passaria pela cabeça de ninguém; o que me confirmou a velha observação de que não há nada tão extravagante e irracional que algum filósofo não tenha sustentado como verdade”.

Retirei este longo trecho do excelente livro “Viagens de Gulliver”, de Jonathan Swift. O escritor faz uma crítica atemporal ao donos do poder, àquela época em sua maioria monarcas, mas que se encaixa perfeitamente à desiludida realidade política pela qual passamos.

Não distinguo o que mais me abate, ter arremessada em minha face a vilania de Brasília ou constatar que o povo brasileiro nada mais faz senão babar feito um ruminante frente ao absurdos expostos pela imprensa. Minha potência de mudança, antes ardente e irradiante, hoje se compara às brasas de um corpo cremado. Não mais me interessa os rumos da pátria, se é que isso existe, pátria.

Confesso que não exitaria um minuto sequer em tornar-me um ditador, caso tal proposta fosse-me ofertada. Puniria violenta e sadicamente todos os políticos, todos. Pois se uma parcela assalta os cofres do bananal, a outra se omite, ou quando se propõe a ir contra os ladrões é por puro interesse privado. Não existe o espírito público em nenhum dos que frequentam os palácios dos reis degenerados e rainhas prostituídas.

E que o povo não espere compaixão. Não a terá, pelo menos de minha parte. Cansei-me da imbecilidade, mesmo que fruto da carência de educação, o que poderia eximir a patuléia de culpa. A questão é que não confio no homem, animal medíocre que ao vislumbrar a mínima oportunidade de ganho entorpece-se, e assim a moral, a honradez, a virtude e a altivez são jogadas aos porcos.

Que estrupem o país, que matem, que sequestrem a glória prometida, que silenciem os justos e que elevem os estúpidos. Talvez, quando todo o mundo for habitado somente por apedeutas, bufões, patifes, traidores, cínicos, idiotas e toda a sorte de homens baixos, eles consigam destruir a nossa espécie e assim a natureza poderá se ver livre de sua criação deformada.

De agora em diante vou assentar-me e assistir, e sorrir, e comprazer-me com as desgraças de nossa vida. Não me interessa mais nada. A única obra que relegarei aos seres vindouros serão minhas fezes. E se acham meu texto ofensivo, esta é a intenção. Façam o que quiserem, parem de ler, corram atrás da pornografia, vão até a janela espiar a vida alheia, que é a prática preferida da maioria de vocês.

Quando acordarem deste sonho caído, quando conseguirem perceber o que é a vida, quando se derem conta do tamanho e das potencialidades de nossa mente, aí sim juntarei-me com extremo regozijo à nossa prole. Como a cólera me fere os olhos, creio não enxergar este dia nunca. Então, que tudo se exploda em infinitos cacos para que esta miséria nunca mais volte a acometer o mundo.