sábado, 13 de maio de 2006

O Craque


O Brasil, sem dúvida, é o país onde quase a totalidade da população compartilha a mesma religião: o futebol. Para nós, seres inferiores não agraciados com a plasticidade da técnica, o perfume da agilidade, a poesia do raciocínio que busca o impossível e o inimaginável, resta matar a sede futebolística nas famosas peladas. E foi numa dessas peladas que presenciei uma obra-prima.

Era uma quarta-feira de noite fresca e límpida, condição perfeita para o desenrolar de um jogo de futebol. Pior para as estrelas, que pela primeira vez se envergonharam, pois tiveram seu brilho totalmente ofuscado por aquele jogador. Uma figura que não despertava qualquer suspeita, que à primeira vista parecia também um habitante do cretino mundo dos quase bons de bola.

A mim coube jogar um pouco mais defensivamente, já que meu preparo físico não anda lá muito apurado. O azar de um milhão de homens parecia ter caído sobre meus ombros, pois o iluminado acabou jogando no time contrário. Após esta partida meu desejo de jogar bola secou como uma poça d´água no deserto, pois percebi a mediocridade de minhas habilidades futebolísticas.

O craque destruiu-me, humilhou-me, ia e vinha quando queria, passava a bola por entre minhas pernas, fazia-a voar sobre minha cabeça numa parábola perfeita, efetuava elásticos, corridas incrivelmente rápidas, cortes secos, chutes bombásticos. Era como se a polícia de uma cidade interiorana, munida de simples revólveres, estivesse confrontando-se com o exército americano numa guerra. Uma assimetria de qualidades absurda.

E, devo dizer, não fui só eu o esfolado, uma vez que todo meu time foi subjugado, torturado, infantilizado e ferido de morte. Um massacre, onde pela primeira vez presenciei um jogo de futebol de um contra sete, um autêntico e acachapante espetáculo.

Mas o tiro de misericórdia ainda estava por vir. Já exausto e ligeiramente contrariado, numa das raras vezes em que consegui possuir a bola em meus pés, arrisquei um lançamento. Obviamente a tentativa foi mal sucedida, e a bola foi rebatida pela defesa adversária na direção do ataque. Meu Deus, aquilo foi incrível!

O chute veio com bastante potência, a bola flutuava nervosa no ar e seguiu galopando na direção do gênio. Pensei: “Essa será impossível de ser dominada”. Ledo engano.

Assim como um amante acolhe sua dama em seu peito, ele estufou a caixa torácica e magistralmente amorteceu a esfera, que iniciou uma subida rente ao seu corpo. Quando esta se encontrava a uns dois metros e meio do chão, geometricamente acima de sua cabeça, iniciou-se o vôo.

Suas pernas bailaram no ar, o corpo parecia estar suspenso por magia, praticamente paralelo ao chão. Não, não foi uma simples bicicleta, e creio que não existam palavras para descrever tamanha magnitude. O chute saiu perfeito, exatamente no vértice das traves, lá onde a coruja dorme.

A bola estufou as redes com violência e depois escorreu macia pela rede, dando a impressão de ter alcançado o gozo supremo devido ao imenso carinho com que foi tratada. Ela permaneceu quieta e brilhante no fundo do gol e ninguém teve sequer a coragem de tocá-la novamente com o temor de maculá-la. A pelada então foi encerrada.

Nós, pobres mortais, fomos arrebatados primeiramente pela perplexidade, que se transformou em admiração, que fez brotar no ar palmas de veneração. Mas uma eternidade de palmas ainda não faria jus à monumental criação.

Parabéns ao craque!

Nenhum comentário: