sábado, 13 de maio de 2006

A Dama Fúnebre


“Sou, na verdade, o Lobo da Estepe, como me digo tantas vezes – aquele animal extraviado que não encontra abrigo nem ar nem alimento num mundo que lhe é estranho e incompreensível”. (Hermann Hesse, O Lobo da Estepe)


Estas mal talhadas letras desta vez procurarão tratar da bruma perpétua dos homens; as palavras aqui marcadas terão por assunto algo não desejado e não suportado pela maioria, a solidão.

Estar só, no raciocínio coletivo, invariavelmente significa melancolia, tristeza, fracasso. Mas esta é uma idéia equivocada e confortável, digna de covardes.

A cabeça carente de inteligência, ou de coragem, procura incansavelmente o morno afago da massa. Segue no mesmo rumo do rebanho, das procissões e peregrinações que conduzem a signos vazios. As multidões trazem segurança, porém decepam a autonomia do ser. Quem assim se comporta simplesmente senta-se à margem das correntes da vida e, placidamente, seca.

Somente quando estamos acompanhados da solidão conseguimos realmente conhecer-nos. Seu violento golpe reduz as máscaras a pó, descarna brutalmente nossa face e expõe os grotões de nosso cérebro, colocando-o nu, assim como as virgens das ruas.

São nestes grotões que se refugiam os pensamentos proibidos, os preconceitos, o flanco ardiloso do homem, o egoísmo, a maldade. Sim, deparar-se repentinamente com o lodo humano é sufocante. As veias são entupidas pela náusea e o coração é arrebatado pelo breu. A sensação do abismo aos seus pés ganha forte contorno, e o vôo cadente parece implacável. Esta dama fúnebre chamada solidão, quando se apossa de um espírito frágil, fere de morte suas entranhas e sua mente.

Neste instante se diferenciam os leões dos vira-latas. Os indivíduos de brio aceitam a passagem oferecida pela solidão com destino a podridão, e dela se nutrem, dela extraem sabedoria. Alcançado o âmago do ser, o mundo se revela diante dos olhos. Monstruosidades se fazem normais, desvios ganham direção, a loucura equipara-se à sanidade. O certo e o errado se dissolvem, a pedra muta-se em isopor. É o amadurecimento da mente.

O solitário já não se prende a convenções, esquemas, regras e condutas; ele simplesmente segue seu mapa traçado nas estrelas. E nessa rugosa jornada, enganam-se os que pensam que o amor é impossível, pelo contrário. A solidão exacerba a potencialidade do amor, sentimento que arde como fogo quando não correspondido, mas que definha friamente com a posse do ser desejado.

A companhia de insetos é, na maioria dos casos, melhor que a de pessoas. Viver sem sentir é a concretização do vácuo, e os indivíduos hoje vivem exatamente assim, algo que levanta o asco. Cultua-se o café sem cafeína, o hedonismo sem sexo, a aventura sem risco, o gozo sem prazer. Todos satisfazem-se com migalhas, com fantasias parcas, e simplesmente ruminam seus dias, um a um, até que a percepção chegue tarde demais.

Portanto proclamo: somente a solidão salvará o mundo, é a única que desvinculará os grandes dos transparentes. Por mais paradoxal que possa parecer, somente a solidão trará novamente o gosto ao mundo, o calor, a real sensação do viver.

Um comentário:

Hugo disse...

Espetacular Thobias; texto magistral, sentenças de pedras.

Hugo César