quarta-feira, 17 de maio de 2006

O Primeiro Dia da Vergonha


1° de janeiro de 2003. O suposto dia da redenção, onde um habitante advindo de nossos porões sociais escala impavidamente a rampa, afeiçoado a um alpinista que acaba de conquistar o cume do mundo. Macacões transformaram-se em ternos e palavras de ordem em domesticados discursos. Se antes as mãos eram maculadas pela graxa, agora elas têm o poder de tingir o futuro do Brasil.

A minha frente encontra-se uma revista datada de janeiro de 2003, cuja edição foi toda ela dedicada ao triunfo dos esfolados. Percebo claramente como somos inaptos para analisar o presente. O roteiro da decaída estava ali, disponível aos olhos do mundo, e escusando os contrários histórico-ideológicos, ninguém conseguiu farejar o podre odor da vilania, da corrupção e da ganância desmedida pelo poder.

Era tudo muito colorido, muito eufórico, um caldeirão de esperanças que não é bem-vindo em nenhuma ocasião. O torpor emocional bloqueia a razão e assim a confiança cega guia-nos terminantemente à navalha. A dúvida, ingrediente indispensável na análise de um contexto, investigadora suprema das vielas da vida, era artigo raro no Brasil àquela época. Como exemplo, reproduzo as deslumbradas letras impressas na capa do veículo: “O Brasil que Virá”.

Atento-me agora a duas fotos presentes no interior da publicação. O super-presidente jactava-se num aceno que denotava o futuro. Desembarcando de um carro aristocrático, um Rolls Royce, cercado por uma maré negra de seguranças e tendo o povo a seguros metros de distância, Vossa Excelência subiu o aclive acompanhado por um companheiro-empresário, ou melhor, um empresário-companheiro.
O parceiro de antigas lutas, que ganhou ares de primeiro ministro, vinha atrás, como que na organização e fiscalização de todo o processo, trajando uma longa e cerrada vestimenta escura, metaforicamente perfeita para se esconder as violações morais, legais e éticas que propiciaram a ascenção da estrela.

Ah, o povo! Este também compareceu, predominantemente vermelho, e saudou como nunca a chegada do salvador. Lágrimas, sorrisos, orgulho, revanchismo, emoções incontidas que formaram um espetáculo de louvor poucas vezes oferecido aos deuses. Alguns se jogaram nas águas do lago, que agora sabemos serem inadequadas para o banho de homens dignos. Mas o povo real, apolitizado, tomou a atitude que dele se esperava, uma massa remoída pelo sofrimento que finca vigília aos pés do primeiro profeta disponível.

E então têm-se em outra página a foto de uma rapoza ligeira da política, numa imagem inquietante. As mãos estão posicionadas como que indicando calma e vagar nas conclusões, com as palmas à mostra, num sinal de pare. A sua feição apresenta sombrancelhas levantadas, olhos arregalados, transmitindo perspicácia e atenção com relação aos acontecimentos. A barba longa e branca omite a sua boca, mas confere sapiência à composição final do quadro. Fala-se de quem?
Pasmem, mas a foto é de Fidel Castro, o último revolucionário, ainda hoje comandante da antiga ilha da fantasia, que hoje se transformou na ilhota dos silenciados. Não sei se coincidência ou não, pois Fidel não estava presente na posse e a foto era de arquivo, mas a publicação justamente desta imagem foi o alerta mais gritante de todos. Até o mistério quis nos avisar.

Outubro aproxima-se, a vontade popular novamente será testada e a única coisa que espero é que daqui a quatro anos eu não me depare novamente com uma revista, datada de janeiro de 2007, retratando este mesmo enredo peçonhento e lastimável.

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