sexta-feira, 15 de dezembro de 2006

João


João nasceu na terra batida do morro, em meio às escadarias da miséria e os barracões cujos tetos encobrem a indecência de um país. O menino nunca recebeu muitos cuidados, o pai era inexistente, literalmente, e a mãe desdobrava-se para atender as demandas de toda prole, composta por oito filhos. De idade intermediária, não carregava a responsabilidade dos mais velhos nem os caprichos dispensados aos caçulas.


Só restava a João pensar sobre sua condição de existência. E ele, presenteado com a potência da dúvida e da crítica, passava horas a raciocinar sobre o porquê de seu mundo ser escrito daquele jeito. Não se contentava com explicações rasteiras, fossem elas oferecidas pelos seus ou pelos pensadores do asfalto, que acreditavam analisar soberbamente sua desgraça.

Não, aquilo não ocorria simplesmente pela desigualdade social, pelas forças do mercado globalizado, pela ganância do dinheiro, pela falta de estudo, base familiar ou incompetência pessoal. Não, a sua tristeza era um castigo, concluía o pobre garoto. Um castigo por algo que havia feito em outros tempos, em outra vida na qual conheceu o mundo vestido de ouro, iluminado pelo Sol amarelo e radiante de fartos prazeres.


Era natal, e João, então com quatorze anos, imaginava solitário qual presente iria receber. Mas o próprio sabia que aqueles pensamentos eram pura fantasia, pois nunca havia ganhado nada, nem mesmo um mísero feliz natal. Por que aquele ano havia de ser diferente? Por nada, apenas ansiava aplacar aquela maldita sensação de vazio, de um abandono frio, concreto e dilacerante. Aceitava o castigo que lhe fora imposto, e aceitava calado, resignado, afinal, lutar contra o juízo divino não era tarefa para ele. Não estava sozinho, sempre foi sozinho. A sua única e constante companhia era a solidão.


Ao assistir a televisão João deparava-se com a maravilha de plástico criada pela propaganda. Famílias felizes, crianças saudáveis e sorridentes brincando num gramado esmeralda, todas se esbaldando com seus novos e suculentos brinquedos. Ao fundo, uma imensa casa de arquitetura moderna cuja garagem sempre guardava um belo carro. O efeito do vento, que balançava suave os lisos cabelos daquela gente estranha, também era percebido pelo garoto sujo e largado. Mas o pior eram as propagandas de alimentos, que vomitavam em sua cara uma mesa farta, com assados brilhosos e bebidas elegantes servidas em cintilantes copos de cristal. O menino nem se lembrava da última vez que havia comido carne.


À noite, João decidiu ficar sozinho, até mesmo porque se quisesse a companhia de alguém não a teria. Postou-se numa esquina qualquer de seu morro. Cheirou por completo sua lata de conserva entupida de cola. Sonhou com tudo que sempre desejou, pois havia encontrado a felicidade fugaz do torpor. E assim permaneceu por toda a noite, imaginando quão agradável era a vida no asfalto.

Adormeceu na terra, com seu cabelo desgrenhado, suas unhas sujas e seu rosto desfigurado pela pobreza. Não queria muito, não, buscava apenas um caminho que lhe fornecesse a esperança. Em sua face, ao invés do sorriso vistoso e dos olhos brilhando de alegria das crianças bem nascidas, escorria apenas um delgado e triste fio de lágrima, que representava o oceano de desilusão que era sua existência.

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