quarta-feira, 27 de dezembro de 2006

O Vôo



Caminhava de maneira apressada, com a respiração bastante ofegante. Levava um cigarro entre os dedos. Os olhos apresentavam-se arregalados, tensos, atentos a tudo. A boca mantinha-se fechada, porém trêmula.

Desde a manhã notara algo estranho. Um sentimento que lhe afligia, que comprimia-lhe o peito, sufocando-o. Num primeiro momento não deu importância ao fato. Possuía o coração amargurado de um ser miserável e solitário, e assim, imaginou aquele dia como apenas mais melancólico que os outros.

Subitamente sentiu uma dor insuportável em sua espinha dorsal. Tombou, e sua face afundou em uma poça que se formara devido à leve chuva que descia dos céus. Seu corpo iniciou uma série de espasmos, a dor era insuportável e a saliva escorria-lhe pela boca. Seus olhos reviraram-se, e agora miravam a alma.

Já inconsciente, iniciaram-se os delírios. Passou a ver uma série de imagens familiares, como que em um filme. Pequenos trechos de sua vida, que se sucediam, não de maneira aleatória, mas seguindo a linha cronológica de sua existência.

Acompanhou toda sua trajetória, desde os primeiros passos até o momento em que desfaleceu. Uma viajem que possibilitou-o raciocinar sobre o que já fora e no que agora se transformara. Um jovem tranqüilo, amistoso, idealista e amante da vida, tornou-se um adulto sem expectativas, rancoroso, decepcionado, espremido pelo mundo, que se valia de safadezas para viver.

Não mais lhe agradava a presença de pessoas ao seu redor. Se as suportava, era porque necessitava dos tolos para as suas trapaças. Reservava o asco tanto para os maus quanto para os bons, e mais especialmente para os bons, devido à ingenuidade destes. Concluiu que um mínimo de afeto ainda restava na relação com a mãe, nada que o comovesse, todavia.

Antes do ocorrido, pensava ser ele um diferente, que não se deixava iludir pelo mundo, um marginal. Uma pessoa fora do eixo, que era seu próprio todo. Daí o seu desprezo pelo resto. Descobriu que na verdade nunca chegara a ultrapassar a barreira do medíocre, do vazio, das encenações. Uma farsa autêntica.

Compreendeu que sempre teve consciência de suas maquinações, e que devido à covardia, nunca ousou abandoná-las. Esse pensamento atingiu-o de maneira incisiva e mortal. Refletiu que simplesmente era só mais um, e nada que fizesse mudaria essa realidade.

Os delírios se foram. Aos poucos foi recobrando a consciência. Lembrava-se de todo o ocorrido, de todas as imagens que lhe vieram à mente. Levantou-se, caminhou aproximadamente por trezentos metros. Parou e começou a olhar de maneira fixa para a água que corria abaixo. O pensamento encontrava-se distante. Subiu, primeiro o pé direito, seguido pelo esquerdo, pois era destro. Um segundo antes do pulo, esbravejou:

− Enfim, voar!

E pulou, sorrindo. Estava livre do peso da verdade.

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