domingo, 17 de setembro de 2006

Impressões Coletivas


Costumo tomar um ônibus todos os dias, atividade obrigatória para que eu chegue ao inevitável trabalho. Confesso que não me desagrada subir as escadas dos coletivos, desde que estes estejam razoavelmente vazios, com assentos disponíveis. Infelizmente, isso nem sempre ocorre, coisas da vida e de governos ineficientes que não conseguem racionalizar e qualificar o transporte público. Mas não é isso o que quero discutir.

Quero falar da rica experiência que um prematuro e incapacitado analista do teor humano tem, quando embarca nos ônibus urbanos. A variedade de faces, olhares, trejeitos, preocupações, sorrisos e até de vômitos é incalculável. Num ambiente de poucos metros quadrados, os animais humanos se digladiam, se congratulam, se admiram, se respeitam, se traem.

A primeira figura a ser avistada é o motorista. Parece existir uma fábrica de motoristas de ônibus em série, devido à similaridade física e psicológica entre a maioria deles. O bigode está invariavelmente presente, assim como a barriga avantajada. Os óculos escuros também encontram bastante aceitação, até mesmo pela necessidade de se esquivar dos efeitos do sol. Falam alto, fazem das vias públicas territórios particulares, são impacientes, muitas vezes gostam de conversar com o seu parceiro de labuta, o trocador. Após alguma freqüência de embarques, se predispõem a balançar a cabeça, apenas um raso cumprimento.

O trocador personifica o sistema financeiro do microcosmo do ônibus. É ele quem gira o ouro, quem concretiza o escambo, é ele quem marca o lucro. Sua piedade não pode ir além de sua mente, ou seja, sem dinheiro, sem deslocamento motorizado. Simplesmente um reflexo do todo econômico. E não é falsa a idéia popular que caracteriza o seu bigode, ralo e desarmônico. Grande parcela realmente apresenta os famosos “bigodinhos de trocador”.

Quanto aos usuários, careceria de ter à disposição a Amazônia em papel para descrever todos os que incessantemente entram e saem por aquelas portas. Mas é possível traçar o comportamento de alguns mais numerosos.

Existem aqueles de olhares perdidos, fixos no nada. Creio que estes estejam a pensar sobre si próprios, sobre seus questionamentos, seu destino, seus erros, suas tristezas, frustrações, sua incapacidade. Os seus olhos dizem tudo, tamanha a desilusão quanto ao presente. Calados, não se intrometem em nada e não gostam de invasões, preferem seguir o percurso pensando, remoendo os arranhões que o viver lhes infligiu.

Outra categoria é a dos deficientes, que surpreendem na quantidade quem é neófito em tomar ônibus. São vários, com problemas diversos, alguns difíceis até de serem compreendidos. Mas todos procuram sempre demonstrar a auto-suficiência, a superação, o drible sobre a rasteira aplicada pela natureza. Assim, exalando a luta e a superação, conseguem sentirem-se superiores. É legítimo que ajam assim, mesmo que, às vezes, apenas insinuem uma grande fraqueza, a dissimulação, camuflagem dos demônios que espetam nossos pensamentos.

Não poderia deixar de citar as moças sorridentes, que apreciam a troca de olhares vulcânica, quente, sem-vergonha, conquistadora. O flerte em movimento, o balançar das ancas em qualquer solavanco, o roçar da pele na passagem para a descida. Não sabemos o nome um do outro, mas isso não atrapalha, pelo contrário, desnuda o desejo e nos torna audazes, desafiadores da moral frígida e castradora.

Por fim, recordo-me dos gentis. Pobres criaturas, que pelo bem coletivo sofrem, voluntariamente, as queimaduras da vivência. Permitem que todos subam no ônibus antes deles, o que geralmente os deixa apoiados nas próprias pernas por toda jornada. Frequentemente oferecem o lugar a pessoas mais fortes. Insistem em manter um sorriso permanente, de falsa harmonia com o outro, antinatural. Frequentemente são roubados pelos trocadores, pois é raro entre eles conferir o troco. Bem, não que sejam estúpidos ou qualquer outra coisa deletéria, simplesmente não se adaptaram a viver no meio selvagem das cidades.

Existem vários outros espécimes, mas o respeito ao espaço me constrange a continuar. Não retiro daqui nenhuma conclusão sobre nada. Apenas descrevi um pouco de minha rotina, que acredito não ser muito interessante. Mas, apesar de tudo, ainda consigo descrevê-la. Sinal de que não estou totalmente dominado, pois, quando chegamos ao estágio da cegueira, o doce químico do tempo entre o acordar e o dormir nos mata.

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