domingo, 20 de julho de 2008

Os índios são “cult”


Caminhava rumo ao inevitável trabalho. O bafo do inverno soprava manso, frio, e lutava contra o sol anêmico que insistia em queimar a superfície suja e asfaltada da cidade. Caminhava de cabeça baixa, como de costume, e em minha frente surgiu uma mão, que oferecia um pequeno folheto, uma cópia xerocada.

A mão pertencia a um corpo feminino, que apresentava a face camuflada por uma pintura branca na altura dos olhos. Todas suas roupas eram pretas, e trazia na outra mão uma cruz de madeira.

Aceitei o folheto e pus-me a lê-lo: “Manifestação: Apoio a Lei Muwaji”. Pensei que diabos seria aquela lei, merecedora do esforço daqueles vinte indivíduos que fincaram sua resistência e sua indignação em pleno centro de Belo Horizonte, num horário pouco aprazível para manifestações, 12h30.

Segue o folheto: “Infanticídio. Você já ouviu falar?” Era a frase que iniciava o primeiro tópico, que continuava com as seguintes palavras: “Centenas de crianças indígenas foram rejeitadas por suas comunidades nos últimos anos. Condenadas à morte por serem portadoras de deficiências físicas ou mentais, por serem gêmeas, ou filhas de mãe solteira, elas foram enterradas vivas, envenenadas ou abandonadas na floresta...”.

Isso parece interessante, concluí. Adiante, deparo-me com o segundo tópico: “O que é a Lei Muwaji?” Sou informado de que a dita lei, ainda em tramitação no Congresso, visa proteger os direitos das crianças indígenas, no intuito de impedir o que a manifestação já havia classificado como infanticídio. O nome é uma homenagem à índia Muwaji Suruwaha, que recusou-se a sacrificar sua filha, Iganani, portadora de paralisia cerebral. Lê-se no folheto que “Muwaji enfrentou não só os costumes de sua comunidade indígena, mas também toda a burocracia da sociedade nacional, para garantir a vida e o tratamento médico de sua filha”.

Forneço minha opinião sem conhecimento profundo de causa, uma vez que não sou antropólogo, indianista, sertanista ou qualquer outro profissional dedicado ao estudo dos povos silvícolas. Porém, guardo um enorme receio quanto a ingerências em culturas apartadas de nossa realidade próxima. Claro, os índios fazem parte do Brasil, menos influenciam e mais são influenciados pelas decisões do governo e da sociedade civil organizada. Mas não trombamos ao acaso com índios legítimos perambulando pelas ruas de nossas grandes cidades, sequer nas interioranas. Por isso me valho do termo realidade próxima. Todos sabem que os índios existem, porém uma parcela ínfima da população lida diretamente com eles.

Retomando o raciocínio, em nossa ótica o “infanticídio” assombra, causa repulsa, revira as vísceras, é veementemente rejeitado. Consideramo-nos evoluídos, componentes de uma sociedade que consegue dobrar a natureza com suas ferramentas mais avançadas, que ricocheteia o vento da vida na traquéia dos pequenos que já nascem amaldiçoados. E acho esplendoroso que assim seja.

Daí a querer que nossos avós de pátria sigam os mesmos passos há uma distância enorme. Os índios decodificaram o mundo a partir de uma ótica particular, onde, simultaneamente, veneravam, temiam e se valiam da natureza para seguir os rumos traçados pelo Deus Sol, ou Lua, ou qualquer Deus que lhes conviesse eleger. Tinham a exata percepção de que uma criança incapaz de produzir em favor da coletividade, seja na caça, nas guerras, na agricultura, na reprodução da tribo, era uma âncora que poderia frear o destino de todos. Não há maldade no ato de eliminar essa âncora, pelo contrário, a visão coletiva é tão arraigada nessas culturas que a morte da criança é vista, inclusive pelos pais, como absolutamente necessária. Ou era, até aparecer Muwaji.

Direitos humanos? Sim, um grande avanço irrefreável, necessário, que evidentemente trouxe mais benfeitorias que malefícios. Os índios não são seres humanos? São, é óbvio. Então os direitos humanos não são aplicáveis a eles também? Claro, mas, em minha visão, somente se os índios optarem por essa possibilidade. Manifestações na Praça Sete que visam defender os pobres e inocentes índios de seus próprios irmãos soam como um exagero, uma violação, daquelas que os pais costumam aplicar aos seus filhos por acreditarem que estes ainda não se encontram prontos para o mundo.

Concordo que em muitas das culturas indígenas onde o infanticídio é prática recorrente o modo de vida se assemelha muito mais ao nosso que ao de seus ancestrais. Mas também acredito que outras tantas ainda preservam de maneira relativamente intacta seus costumes, ritos e sacrifícios, sua engenharia social que até hoje foi capaz de lhes fazer progredir, ao seu próprio ritmo.

Por fim, destaco rapidamente um outro ponto: por que não existem manifestações contra o infanticídio praticado pelo Estado, que ceifa a vida de milhares de pequenas almas todos os anos? Por que não lutar por uma melhora estrutural que reflita diretamente em nossos desdentados, estes que participam de nossa realidade próxima? Por que só há mobilização para questões consideradas “cult” (cultuado nos meios intelectuais e artísticos, segundo o Houaiss), como a defesa do ambiente, dos próprios índios, de uma vida light, a luta contra a poluição? Porque nada mais “cult” que passar a ir trabalhar de bicicleta para poluir menos. O problema é o ar-condicionado ligado oito horas por dia no desenrolar do labor, visto que o conforto é essencial. Quando os desgraçados serão eles também “cult”? Eu mesmo respondo: quando forem sacadas da palavra “cult” as letras “l” e “t”.

Um comentário:

Anônimo disse...

"Forneço minha opinião sem conhecimento profundo de causa, uma vez que não sou antropólogo, indianista, sertanista ou qualquer outro profissional dedicado ao estudo dos povos silvícolas"... Não forneça! Obrigado.