segunda-feira, 17 de março de 2008

Ele está no mundo

Último registro do sofá. Vocês entenderão.


Aqui em minha humilde morada tinha um sofá. Um sofazinho feio que doía, marrom, com largas listras beges, que traziam também desenhos azuis, desses ordinários, que ninguém sabe ou se importa em saber o que é. Feio mesmo.


Porém, o conforto que reservava às bundas alheias era fenomenal. O sofá era macio, ao sentar você era abraçado por sua espuma, uma verdadeira massagem. E ainda por cima era do estilo bicama, grande, uma genuína maravilha aquele sofá. Ele era um conto de fadas na verdade, onde o feio vira, assim, de repente, a coisa mais aprazível do mundo. Não sei se consegui atingir a clareza necessária, mas sigamos em frente.


Eu e meus botões imaginamos qual a trajetória daquele sofá. Ele chegou aqui em casa usado. Um antigo companheiro de república foi quem o trouxe. Seu pai tinha uma loja de móveis, daí, como a casa precisava de algo para que pudéssemos sentar, surgiu o sofá. Segunda mão, como já disse, e centenas de bundas de uso.


Aí, fazendo uma junção com o que o sofá suportou em minha casa, fiquei pasmo. Um universo incomensurável de histórias residia ali, ao lado dos ácaros, que certamente eram muitos, muitíssimos.


Primeiro imaginei um namoro juvenil surgindo, apoiado por aquele tecido feioso. Um garoto visita a casa de sua paquerinha na escola, todo vergonhoso, procurando desesperadamente um buraco pra enfiar sua cara. A primeira coisa que ele faz é sentar no sofá, a convite da futura sogra. Não fala nada por enquanto, recomendação da namoradinha, que o preveniu sobre as impressões que o pai guarda com relação aos falantes. E o sofá ali, de olho em tudo, e três olhos em cima dele, o da mãe, o da namorada e o do rapaz tímido, mas corajoso. Irrompe de repente o pai, com uma caneca de café na mão, o bigode molhado e exalando o cheiro convidativo da bebida. Senta-se ele também no sofá, que aí arria, geme inclusive, suas molas gritam contra o peso exagerado. O homem olha para o rosto do menino, irritado, era fato, e diz simplesmente assim: “Corto seu pau se o peito dela começar a crescer de uma hora pra outra. Isso é hormônio, gerado pela safadeza, eu sei porque minha mãe escolhia as noras assim, olhando os peitos. Menina nova de peito grande, pode saber, já visitou moita”. E mesmo assim o namoro deve ter começado, o garoto gostava da menina, e ela dele. Quanto ao peito, aí não é comigo.


Virando a página, pensei em uma morte sendo contada naquele sofá. O falecido já era velho, doente crônico, pelo visto câncer de esôfago. Desde que foi internado a casa estava triste, e o sofá também. O velho era seu companheiro de tardes, aqueles longos domingos assistindo Sílvio Santos, lá lá lá lá lalá lá lá lá lá lalá, o sofá adorava os calouros, e o velho também. Além de que o homem era levinho, franzino, não exigia quase nada de seu companheiro. Ah!, e os ácaros, verdadeiros donos daquele ambiente, se esbaldavam com o pijama surrado do velho.Tudo era uma harmonia só. Então, voltemos à comunicação da morte do velho. A senhora viúva, que não era das mais costumeiras naquela espuma – o dia corria rápido com tantas tarefas domésticos - não resistiu à notícia e foi obrigada a sentar-se, no sofá, o melhor amigo de seu falecido esposo. Choraram ali os três, a viúva, o sofá e a colônia de ácaros. É que seu genro contou a desgraça de uma vez só, sem rodeios, aí as pernas da senhora tremeram e foram vencidas, 54 anos depois. A queda foi confortada pela lealdade do sofá, amigo presente que era.


O barco que rodeia meu cérebro continuou a rumar sem rumo, e não é que me deparo com um pequeno rebento sendo concebido no sofá? É..., vivido esse sofá, já viu morrer e sentiu nascer. E foi berço de sabe-se lá quem. Um bandido, um homem de negócios, um otário, um cara gente fina, um psicopata, um puto, um esportista, um cara que gosta de jogar damas, vai saber. Mas outros futuros fetos, que não tiveram a oportunidade de adentrar no autódromo onde se desenrola a corrida mais sublime de todo o universo, caíram no sofá e lá secaram. Daqueles que poderiam ser restou apenas uma mancha, que se destacava no tecido, formando um quadro no mínimo excêntrico. O sofá, obviamente, não gostou daquele rejeito boiando em sua pele, mas não podia fazer nada além de ranger com as molas. Aliás, as molas eram parte integrante e essencial em todo processo, elas conferiam ritmo à levada dos amantes. Essencial, e naquele sofá, mais ainda.


Quantas mais histórias poderiam existir? Só Deus responde, isso se ele não estiver ocupado, organizando seu tabuleiro de War. Mas não pensem que o sofá se desintegrou. O texto está no passado por puro saudosismo barato. O sofá ainda resiste, firme, sujo e empenado. A vida lhe exigiu horrores. Sabem quem os braços do sofá acolhem agora? Mendigos, sem demérito nem para os mendigos nem para o sofá.


Deixado na rua devido à chegada de um irmão mais novo, mais limpinho e de roupagem mais clara, foi jogado às traças, e isso é normal, acontece. Garanto que não há ressentimentos por parte do sofá, pelo contrário. Por um tempo os mendigos o colocaram debaixo da passarela do metrô da estação Gameleira. E por lá ficavam horas, cheirando cola e viajando, e o sofá ali, escutando tudo, acumulando mais histórias, tornando-se uma verdadeira enciclopédia da vida miúda.


Há algum tempo não o vejo mais. Aliás, nem aos mendigos. Se foram todos. Não me importa onde o sofá está agora. Certamente, ele está bem.

Um comentário:

Frederico disse...

sem contar as inúmeras guimbas de cigarro e as partidas memoráveis de w11 ;)