sábado, 19 de janeiro de 2008

A Mãe e o Cantor


O parto foi tranqüilo, tão quanto um parto possa ser. O menino nasceu forte, saudável, à primeira vista como qualquer outro bebê. Fora precedido por outros cinco irmãos, sendo que o mais próximo já havia visto a luz há sete anos. Era fruto de um descuido, sua vinda não pairava nos planos dos pais. Talvez por isso nunca pertenceu realmente àquela família. Não trato aqui de questões afetivas, mas sim de comportamento. Vocês entenderão.

Desde novo seu gênio se mostrou impulsivo e explosivo. Era agitado, elétrico, irrequieto, uma faísca de energia que corria por todos os cantos da casa sem parar, que necessitava de uma vigília fina para que não se ferisse ou quebrasse algo. Outro lado de sua personalidade que despontou cedo foi o amor pelo barulho, barulho que mais tarde se converteria numa melodia angelical, agradável, que tomava de assalto os ouvidos daqueles que puderam beber de seu talento.

Aos seis anos o pai presenteou-lhe com um pequeno tambor de plástico, eliminando assim qualquer possibilidade de silêncio naquela casa, ao menos enquanto o jovenzinho encontrava-se acordado. Um ritual era seguido à risca pelo pequeno. A cozinha de seu lar tinha uma porta que levava a um pequeno terreiro, que possuía um degrau de mais ou menos 30 centímetros. Ali sentava-se, por volta das 10 horas da manhã, quando a mão iniciava a feitura do almoço, e iniciava suas incursões pelo ritmo. No começo, um barulho irregular e desagradável, que mais tarde viria a transformar a larva em borboleta. A mãe não se importava, e tinha planos para aquele que parecia ser o único dos filhos que demonstrava uma queda para a arte.

Ela imaginava seu rebento, no auge dos vinte, trinta anos, sendo escutado em todo país, quem sabe, até mesmo no exterior. Tinha certeza de que ele guardava consigo uma jazida de diamantes que, ao ser descoberta, seria mais valorizada que qualquer outra. E nada mais justo do que seu pensamento, visto que ela acompanhou a evolução de seu menino ano a ano. Foi ela quem convenceu o marido a comprar um violão para o agora rapazinho, na plenitude de seus 12 anos. Foi ela quem bancou as aulas de música que ele começou a freqüentar ainda naquele ano. Era para ela que ele tocava todas as manhãs, com ar solene e hora marcada, sempre às 10 da manhã.

Aquele batuque disforme agora transformara-se em músicas de artistas que cantavam poesias, histórias de vida, cicatrizes profundas que marcaram o coração de tantos. Vez por outra ele perguntava à mãe quais eram seus músicos favoritos, para assim aprender a executar suas obras e exibi-las no concerto particular das 10. E ali os dois permaneciam por um longo tempo, ele tocando, ela apreciando a arte que brotou de seu ventre.

Assim foi até o garoto completar 16 anos. A hora de buscar um lugar na vida havia chegado. Como o adolescente só se mostrou disposto a encarar a música, seu pai havia dado o ultimato: ele queria que isso rendesse algo de concreto para a vida de seu filho, em suma, queria vê-lo ganhar alguma renda com aquilo. Não seria possível sustentá-lo para o resto da vida, as condições não eram boas. Assim o jovem partiu para a estrada aos 17 anos, sem nenhuma perspectiva concreta à vista. A mãe, como todas as outras, foi contra a expor seu filho de maneira tão radical às malícias do mundo, mas não foi escutada. A decisão já estava tomada.

E assim ele partiu em busca do sonho. Percorreu meio mundo em suas andanças, tocou em todos os tipos de bares, prostíbulos, biroscas e afins que encontrava no caminho. Como não podia deixar de ser, foi apresentado aos prazeres baratos da vida, bebida, putas e drogas. E mergulhou fundo nessa estrada.

Os dias viraram noites, o ritmo era pesado, o corpo era posto à prova. A rotina era simples: um porre, uma puta e várias carreiras durante as apresentações. Conseguiu equilibrar-se nessa corda durante alguns anos, mas o excesso cobrava agora sua fatura. A evolução musical que poderia levá-lo a um patamar mais refinado e elevado, artisticamente falando, foi interrompida. O ímpeto para compor esvaiu-se. A qualidade de seus shows já não era a mesma. Começaram a escassear os locais dispostos a contratá-lo. O dinheiro, que nunca foi muito, agora era irrisório. A ruína de seu sonho estava desenhada.

Quanto mais o abismo se aproximava mais se entupia daquilo que fizesse sua cabeça flutuar. A saúde iniciou seu ciclo de debilidade. Eram constantes os vômitos, que jorravam misturados com sangue. Via a vida escorrer pelas privadas imundas dos chiqueiros em que tocava. Não tinha dinheiro nem disposição para procurar um médico. Não tinha coragem de recorrer à família, pois voltaria como um derrotado que não conseguiu dar vôo às suas asas. Quando ligava mentia, mentia descaradamente, dizia que tudo estava bem, que oportunidades se avizinhavam, que sua hora estava chegando.

A mãe acreditava no que ele dizia até certo ponto. Algo lhe cutucava as costelas todas as noites, a insegurança era sua companheira, pressentia que nem tudo eram flores. Mas sua ação era muito limitada, agora ele já tinha 26, já era homem formado e escolado na vida, sabia o que queria ou não, o que podia e o que não podia fazer. Realmente ele sabia, mas só fazia o que não podia.

Até que uma ambulância bateu à porta daquela casinha simples numa manhã de sábado. O serviço social da prefeitura da cidade onde estava foi acionado quando encontraram um homem, já quase morto, dentro do quarto de uma pensão vagabunda. O diagnóstico foi overdose. Conseguiram salvá-lo, mas os assistentes sociais resolveram mandá-lo de volta. Seria menos um problema em sua localidade. E assim o fizeram.

A mãe atendeu a porta e quando captou a cena sentiu as pernas esfriarem e tremerem. Esperava pelo pior. Foi avisada do acontecido e informada de que ele carregava consigo uma grave doença que provavelmente o mataria em pouco tempo. Tinha cura, mas devido ao estágio avançado em que se encontrava nada mais podia ser feito.

Ela acolheu sua cria com uma tristeza indescritível no olhar. E todos os planos feitos? E toda a esperança depositada naquele barrigudinho barulhento? Tudo agora eram cinzas frias, que o vento espalhava ao seu bel-prazer. O menino, pois era assim que a mãe ainda o enxergava, foi colocado no mesmo quarto que um dia acolheu sua energia e vitalidade. Sua capacidade limitada quase o proibia de sequer dar um passo.

Certo dia, enquanto a mãe inicia os preparativos para o almoço, às 10 da manhã, foi surpreendida pela sua presença. Caminhava devagar, exalando um esforço imenso para chegar até o degrau que outrora foi seu palco. Arrastava o violão já gasto em uma das mãos. Sentou-se e tocou a canção preferida de sua mais fiel espectadora. A voz sumia e denotava o esforço quase sobre-humano que fazia para cantar. Ela, paralisada, chorava, simplesmente chorava. Não disse nada. Após a música, ele retornou ao seu quarto.

Naquele dia o almoço não foi feito, a emoção causada na mãe foi arrebatante. Passou o resto da manhã e toda a tarde deitada no sofá, consumindo as lembranças daquele que um dia foi sua maior alegria.

Ele morreu dois dias depois de prestar a maior homenagem que qualquer mãe nesse mundo já havia recebido. Foi enterrado junto com seu violão.

Nenhum comentário: