segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Um copo de vida

Ali, o ar era pesado como chumbo. Por mais que todas as janelas estivessem abertas o vento se recusava a entrar naquela casa, a atmosfera carregada do lugar impedia que novos ares oxigenassem o matadouro transformado em lar.

Aquele ar pestilento, aniquilador como a mão de um carrasco, saía da boca de um velho que há trinta anos fora jogado ali. Apenas o trancafiaram para que apodrecesse sem maiores questionamentos. Serviço engendrado pelo aparato oficial, com o carimbo de confidencial a prestar-lhe o necessário sigilo.

Na verdade, o velho fora declarado morto há trinta anos. E realmente estava, porém insistia em continuar respirando o veneno. Era um lutador, mas nem mesmo o mais corajoso dos titãs poderia derrubar o preconceito que o perseguia.

O pobre homem, transformado em demônio, era portador da hanseníase, na linguagem popular, lepra. Os dedos das mãos já bastante consumidos, como as rochas gastas pelos ventos de séculos, e a pela escamosa, de uma vermelhidão assustadora, afugentavam qualquer possibilidade de toque. Não se recordava mais do sabor dos lábios de uma mulher, sequer rememorava a última vez que alguém havia olhado em sua direção. Desde que fora jogado no lixo, tal qual restos de comida, o mundo lhe reservou o desprezo.

Os dias passavam, as lágrimas escorriam, as lembranças queimavam-lhe o estômago. Eu não tenho culpa, repetia para si mesmo. E realmente não era o culpado. Os inquisidores modernos haviam-no condenado antes mesmo de entenderem o que significava a lepra. Fincaram-lhe uma cruz de toneladas nas costas e há trinta anos a carregava sem se envergar.

Mas agora o cansaço cobriu-lhe os olhos, sua cabeça desistiu de continuar a pensar, esperava a morte física com toda a potência. A velhice, com lepra ou não, nunca esteve em seus planos. Desejava com ardor não mais acordar, que aquilo se encerrasse o mais rápido possível.
O velho, ansioso pelo golpe final, não imaginava que a vida seria capaz de surpreendê-lo novamente. Porém, a vida é uma artista capaz de surpreender até mesmo os Deuses que dela não precisam. E com o velho diabo não foi diferente.

Numa tarde qualquer, de um dia qualquer, uma jovem fez o serviço que o nem mesmo a fé conseguia mais. Ela soprou um fio de vida naquela casa.

Estava ali em busca de relatos, elaborava uma reportagem sobre a hanseníase, necessitava dos depoimentos daqueles que não queriam mais falar, pois compartilhar uma situação tão terrível quanto aquela não era nem um pouco agradável. E assim a campainha tocou.

Sem a menor vontade, o velho levantou-se da cadeira, a única coisa na terra que aceitava abraçar-lhe, e dirigiu-se até a porta. Abriu-a. A jovem estava lá parada e impressionou-se com a face desprovida de vida que avistou. Os olhos do homem esquecido há trinta anos eram opacos, semelhantes aos de um peixe morto. Ela hesitou, sentiu medo inclusive. Mas boa jornalista que era seguiu em frente e propôs a entrevista ao zumbi. Após alguns segundos de espera ele respondeu que iria falar.

Estava certo que aquela seria a última vez, pois enxergava com plena nitidez o caminhão dos desgarrados manobrando à sua porta. Falaria, pois queria julgar a humanidade e condená-la, assim como fora julgado e condenado sem o direito de defesa. Seria sua vingança.

Convidou a jovem a entrar, ofereceu-lhe uma cadeira. A jornalista, já um pouco cansada, pois aquela seria a sétima entrevista do dia, pediu água. Sem esperar pela resposta e após pedir licença, ela seguiu até a cozinha, pegou um copo, encheu com a água da torneira mesmo, bebeu o líquido em um só gole e voltou.

Deparou-se com o velho chorando, mas aquelas eram lágrimas de alegria. Ele a olhava com um ar de agradecimento, parecia que havia salvado sua vida. Aquela jovem havia se transformado em um anjo para o leproso. Ele repetia insistentemente, obrigado, obrigado, obrigado, obrigado por me fazer humano novamente.

Ela não entendeu absolutamente nada, chegou até a pensar que a reação do velho era decorrente da oportunidade oferecida para que ele contasse sua história. Mas não era nada disso.

Após alguns minutos, um pouco mais calmo, o velho apertou sua mão, também sem pedir permissão, e libertou as palavras mais sinceras que já ecoaram pela Terra. Com a voz embargada, disse, há trinta anos ninguém tem a coragem de encostar a boca no mesmo copo que eu uso. Obrigado.

Após dois meses o velho hanseniano morreu. Mas em seu coração havia germinado uma esguia e frágil flor de esperança, fazendo-o acreditar novamente na possibilidade de um novo mundo para os que virão.

*Baseado em fatos reais.

Nenhum comentário: