domingo, 15 de junho de 2008

Talvez eles mereçam


A essa hora aquelas ruas já estão cheias de gente, de poeira, de barulho, de fumaça, de trapaças e de boas intenções. A multidão segue seu caminho trilhado em círculos, disparatada. Todos se toleram, todos se olham, todos se desviam. Estão debaixo da mesma poluição, têm algo em comum.

Aquele homem está deitado, pedindo esmolas. É o que restou a ele. Talvez tenha feito por merecer. Quem sabe já roubou, traiu, cobiçou e destruiu. Quem sabe era um carrasco para os filhos, que agora o deixam abandonado, acompanhado pelo lixo. Seu rosto não denota nenhuma emoção, apenas marca a proximidade da morte. Ele é menos importante que a grama, tapete verde que costumeiramente recebe uma placa alertando para sua fragilidade: “Não pise”. Aquele homem não dispõe de tal tratamento, não há placas denunciando sua fraqueza, não há nada a protegê-lo da sola do mundo. Talvez ele mereça.

Um pouco à frente um gordo se entope de pastéis, enfurnado em um cubículo pintado a gordura. Sua cor vermelha, o suor que escorre da testa e molha sua camisa, a respiração ofegante, os olhos arregalados, tudo denota sua má condição de saúde. Mas ele não se importa, a gordura é seu combustível. Talvez ele mereça. Já pode ter sido um atleta, possuidor de um corpo azeitado como uma Ferrari. Competia e ganhava. Mas valia-se de subterfúgios, se dopava. Foi banido das arenas, e o que restou foi apenas o prazer de destruir aquilo que já foi seu maior tesouro, seu corpo. Seu coração está com data marcada para pifar. Talvez ele mereça.

Seguindo, a figura de uma mulher surge e inunda a cena. Bem vestida, de cheiro agradável, cabelos lisos e nutridos, corpo curvilíneo e atraente. Somente seu olhar foge da normalidade. Mira o nada e acerta em ninguém. Certeza, aquilo é tristeza. Talvez ela mereça. Sabe-se lá se aquela mulher, do alto de seus trinta e poucos anos, já viveu um grande amor, já sentiu o que é ter alguém ao seu lado que estaria disposto a sacrificar-se em troca de sua felicidade, alguém que deslocaria o eixo da terra para que a sombra se aconchegasse em sua cabeça, alguém que seria capaz de criar o mundo novamente a seu gosto e simpatia. Mas ela, em troca de uma noite de gozo irresponsável, de uma fugaz realidade sem densidade, cortou esse amor. Ele se foi, não era homem de aceitar traições. Ela ficou, e desde então seus olhos não se fixaram em mais nada. Onde está aquele que quero, quem agora está deitado em seu peito, perguntas que martelavam seus pensamentos. Nunca mais sentirá nada, por ninguém. Nem pelos gatos ou cães. Está fadada a ser uma eterna admiradora da felicidade alheia. Talvez ela mereça.

Um pouco à frente, entretido na análise rasa dos outros, tropeço em um buraco. O tombo em uma rua lotada é dos acontecimentos mais vexatórios de nosso tempo. As mãos se ralam, a pele é esfolada e as gotas de sangue começam a brotar. Elas ardem. “Machucou?”, “O que aconteceu?”, “Hihihihihi”. Sigo com passos afoitos, quero sair logo dali. Fiquei exposto. O tornozelo também foi afetado. Obviamente, o joelho foi outro que se ralou, mas agora não há tempo para verificar todos os arranhões. De tanto prestar atenção nos outros, acabei não enxergando o buraco em minha frente. Talvez eu mereça.

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