terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Cuba Libre


JANIO DE FREITAS - Folha de S.Paulo - 26 de fevereiro de 2008


As previsões imprevidentes

Fora dos níveis dirigentes cubanos, nenhum de nós sabe para onde vai Cuba; se é que neles alguém sabe

O DILÚVIO de chavões sob a forma de artigos e de reportagens publicados desde o afastamento de Fidel Castro sugere que a imprensa, inclusive a internacional, não está muito melhor do que Cuba, se Cuba estiver no estado que esse aparente jornalismo lhe atribui. A enxurrada parece ter o propósito de juntar, em uma só descarga, toda a lengalenga das previsões falhadas e das desinformações interessadas que a imprensa reiterou, sem descanso nem pudor, durante o meio século, que vai se completando neste 2008, do regime criado por Fidel Castro (primeiro, regime revolucionário-nacionalista; e só mais tarde, de base comunista).


A palma de ouro não poderia senão permanecer com "The New York Times", que pôs em campo um certo Anthony DePalma. Capaz de frases assim: "Não é certo que Fidel esteja bastante bem para ter escrito a carta de renúncia, (...) desconfia-se que ele não teria condições de escrever a série de ensaios". Eis um jornalista de quem não se desconfia, tem-se logo certeza. Mas merece mais um aperitivo: a "pouca evidência nas ruas de uma mudança monumental na hierarquia (...) credita-se à experiência acumulada com a ação dos agentes de segurança, que (...) faz a maioria das reações serem encobertas sob a forma de apertos de mão entre amigos numa rua lotada". Se os amigos não estivessem se manifestando com aperto de mão na hora tão especial, se esmurrariam ao encontrar-se, como de praxe.


Como rescaldo do dilúvio, as análises sobre a escolha de Raúl Castro para a Presidência cubana são fiéis às previsões diárias de 50 anos sobre Fidel Castro e o regime cubano: em vez de marionete da Rússia, vai sê-lo do irmão, que não quer mudança alguma; se houver novos planos, inspirados na China ou no que for, não têm como concretizar-se. Afinal de contas, informam-nos aqui, em Cuba "as famílias lutam diariamente para obter um mínimo de refeições". O que nos impede de imaginar como esses famélicos têm expectativa de vida de 77,1 anos. Mais do que os tão bem nutridos brasileiros. E o equivalente à expectativa de vida em países desenvolvidos.


Alguma das previsões do último meio século sequer pressentiu a presença do papa João Paulo 2º em Cuba e a recepção que lhe foi dada sob direção do comovido Fidel? Ou antecipou-nos a abertura de Cuba aos investimentos estrangeiros em hotéis, atividades turísticas, empreendimentos imobiliários, moda, recursos naturais, e outros? Ou pressentiu a possibilidade de uso legal do dólar americano em Cuba? Ou, agora mesmo, ao menos captou a renúncia de Fidel? Cuba mudou muito. Com muita rapidez dos anos 90 para cá. E ninguém, fora dos seus níveis de direção política e administrativa, pressentiu mudança alguma.Estamos na mesma. Apesar de tantos milhares de quilômetros de papel e horas de rádio e TV com previsões analíticas do futuro de Cuba, estamos na mesma: fora dos níveis dirigentes cubanos, nenhum de nós sabe para onde vai Cuba. Se é que neles alguém sabe.


Talvez uma evidência, nada com previsão, possa ter um pouco de utilidade. Muito ao contrário do que está generalizadamente afirmado, a escolha de Raúl Castro não é forçoso sinal contrário a mudanças. O Exército, em Cuba, é considerado a própria alma da "Revolução no Poder", a extensão dos guerrilheiros de Sierra Maestra e, daí, a instituição de mais influência horizontal e vertical. Não consta que alguém, exceto Fidel, tenha mais prestígio e mereça mais confiança no Exército do que Raúl Castro. O que lhe dá, se houver planos de mudanças, sejam quais forem, melhores condições de tentá-las do que qualquer outro teria na Presidência cubana.


A Cuba surgida da Sierra é um fenômeno em muitos sentidos. Entre eles, o de imprevisibilidade, como conviria, radical.

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