quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Papo de Cacique - Parte 1

Acabo de sair de uma entrevista com o vice-prefeito de São Gabriel da Cachoeira, André Baniwa (PV). Foi uma conversa bastante esclarecedora, que envolveu desde a disputa política local até características e anseios da população indígena que vive ao longo do Rio Negro.


André Baniwa, vice-prefeito de São Gabriel da Cachoeira

Para conhecimento, São Gabriel da Cachoeira foi a primeira cidade brasileira a eleger dois indígenas para os cargos de prefeito – Pedro Garcia (PT) – e vice. Tratando-se somente de prefeito foi a quarta. Pode parecer estranho que só agora uma cidade com 85% da população formada por índios tenha realizado tal feito, mas os motivos expostos por André Baniwa explicam em larga medida esse paradoxo.

O vice-prefeito relatou o sentimento de desconfiança que dominava a mente dos índios com relação aos de mesmo sangue. Segundo ele, esse olhar enviesado advém de tempos remotos, desde o início do contato com o branco e a transferência forçada de nossa “civilidade”. Sua explanação tocou num ponto muito interessante, o de que os índios vêm sendo educados para acreditarem que somente o branco pode resolver os problemas, pois é ele quem detém o poder, quem possui a riqueza, quem domina os palácios. Assim, um índio no poder é enxergado pelos seus irmãos como “fora do lugar”, habitante de um mundo que não é o seu. “É o homem branco quem possui o poder, desde os missionários até os patrões”, afirma Baniwa.

Perguntado se algum representante dos índios já havia sido eleito vereador e realizado um trabalho decepcionante, o que também poderia ser umas das razões para tal desconfiança, o político disse que cerca de dez indígenas alcançaram a vereança no município anteriormente, e que muitos desses acabaram sendo absorvidos pelo grupo político no poder à época, o que de fato desagradou a comunidade indígena. No entanto, em sua visão, esse fato não é decisivo para o sentimento que vigorava até então.

Vigorava, pois de acordo com o vice-prefeito a população readquiriu a capacidade de ter esperança após a vitória dos novos mandatários. “Isso também aumenta nossa responsabilidade, pois podemos fazer com que o trabalho continue ou fazer com que nunca mais nenhum de nós seja eleito”, reconhece Baniwa.

Perguntado sobre os principais desafios do município, André Baniwa novamente surpreende. “O mais urgente é a água”. Mas como? Um lugar como esse, cercado por rios caudalosos, enfrentando problemas com água? Pois de acordo com o vice, em muitas casas da cidade as torneiras estão secas, fruto do péssimo trabalho da Companhia de Saneamento do Estado do Amazonas (COSAMA).

Outros pontos prioritários apontados pelo vice-prefeito foram saneamento básico, geração de energia, meio ambiente e educação. Neste último ponto a falta de professores na rede pública de ensino foi classificada como gravíssima por Baniwa. Retrato exato do que acontece em outras partes esquecidas de nosso país.

A coligação vencedora, composta pelos partidos PT, PV, PP, PPS, PDT, PSB, teve uma base de apoio fincada no trabalho social. Houve uma articulação bem montada entre as várias organizações de dezenas de comunidades indígenas pertencentes a São Gabriel da Cachoeira, ativistas de movimentos ligados à educação e saúde, mulheres e jovens. Entra-se aqui em um terreno movediço.

Tanto o prefeito quanto seu vice são oriundos da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN), entidade fundada em 1987 para lutar pela demarcação das terras indígenas no Rio Negro. A FOIRN se declara sem vínculo partidário. Mas é óbvio que a política já dominou a Federação. André, quando questionado sobre a importância da entidade no jogo político local, confirmou que ela é um ator de peso. Depois desconversou, dizendo que o objetivo é aplicar no poder público as políticas de êxito comprovado implantadas e executadas pela Federação. Mas a impressão é que existe uma entidade, a princípio sem fins partidários, que se transformou numa ferramenta propulsora de campanhas, podendo inclusive oferecer apoio financeiro, como acontece com outras entidades que adentram a política. Repito, isso é uma impressão. Sei que o jornalismo não permite impressões, apenas fatos, mas não me furtarei de expressar uma realidade latente. Caso seja verdade, os danos futuros e as práticas nada aceitáveis inerentes a esse xadrez lamacento virão à tona, inevitavelmente. Torçamos para isso não ocorra.

Segundo relatou André Baniwa, São Gabriel da Cachoeira não possui um núcleo econômico ativo. A cidade gira em torno dos salários dos militares e dos servidores públicos dos poderes municipal, estadual e federal. Questionado sobre possíveis alternativas, o vice-prefeito não ofereceu uma resposta alentadora, exemplificando ações passadas fracassadas como a organização da produção agrícola das comunidades indígenas. “Essa situação dá até vergonha”, admite Baniwa. O turismo, que poderia tornar-se uma alternativa viável, depende da vontade do poder estadual, que se mostra mais preocupado em catapultar o setor em Manaus e algumas cidades que se localizam em sua órbita de influência.

Mesmo reconhecendo a precária situação econômica da cidade que ajudará a administrar, Baniwa não considera São Gabriel um município pobre. “Você pode olhar, em qualquer comunidade os índios têm o que comer, têm casa, têm sua canoa. Se for olhar o consumo anual de peixe por essas pessoas, são toneladas, que transformadas em moeda é muito dinheiro. Fome ninguém aqui passa”, disse, fazendo uma comparação que não justifica ou esconde o problema da falta de geração de renda.

Por fim, André Baniwa definiu assim o que é nascer e crescer em São Gabriel da Cachoeira: “Nascer aqui é se sentir no lugar certo. Aqui temos nossa história, esse lugar nos explica o mundo, desde a origem da humanidade. Aqui adquirimos nosso conhecimento sobre as regras da natureza. Aqui, nós, índios, estamos no lugar certo”.

Em breve publicarei a segunda parte da entrevista.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Close-up da bicharada

Crédito das fotos: Thobias Almeida
Arara Canindé

Preguiça-bentinho

Filhotes de peixe-boi

Arara Vermelha

Macaco de Cheiro

Iguana


Boto

Presidente Figueiredo - Fotos

Crédito das fotos: Thobias Almeida

Cachoeira dos Três Furos

Cachoeira dos Três Furos

Refúgio do Maroaga

Refúgio do Maroaga.

Refúgio do Maroaga.

Gruta da Judéia. Quando chegamos, um jacaré gaiato descansava tranquilamente nessas águas, fato inédito, segundo relatou nosso guia. Não deu para capturar a imagem.
Gruta da Judéia

A Natura está de olho na seiva dessa árvore, o Breu Branco. O perfume natural impressiona, é realmente muito bom, além de funcionar como um ótimo repelente.

Arquipélago de Anavilhanas - Fotos

Crédito das fotos: Thobias Almeida







Anavilhanas
Segundo maior arquipélago de ilhas fluviais do mundo.
Local: Novo Airão (100 km de Manaus)

A Estação Ecológica Anavilhanas tem cerca de 400 ilhas. Situa-se no Rio Negro, próximo ao Parque Nacional do Jaú, e abrange os municípios de Manaus e Novo Airão. Tem uma área de 350.018ha e foi criada pelo decreto n.º 86.061 de 2 de junho de 1981. O maior arquipélago fluvial do mundo é o de Mariuá, em Barcelos (AM), com aproximadamente 700 ilhas.
Pelos grupos definidos pelo SNUC (Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza) é uma Unidade de Proteção Integral. Sendo assim, o uso dos seus recursos naturais ocorrer apenas de forma indireta.*

*Wikipedia

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Parada: São Gabriel da Cachoeira (fotos)

Crédito das fotos: Thobias Almeida
Pôr-do-sol no Rio Negro.

Vista do hotel. Ao fundo a Bela Adormecida.

Rio Negro (Negro?).


Opa!

Barco típico da região.




Parada: São Gabriel da Cachoeira

Buenas meus caros! Chegamos (Aline e eu) a São Gabriel da Cachoeira no sábado à noite, num total de 28 horas de viagem de barco Rio Negro acima. Viemos em uma embarcação mais rápida, "barco expresso", que leva menos passageiros e menos carga e tem a aparência de uma lancha. A passagem é um pouquinho mais cara (R$ 300 contra R$ 220 na rede do barco normal), porém, o tempo gasto é infinitamente menor.


A viagem padrão leva de quatro a cinco dias. Como já passei algum tempo por aqui navegando, optei pela rapidez, o que não impediu em nada a apreciação da bela paisagem. O desenho composto pelo Rio Negro e suas águas obviamente escuras contrastantes com a floresta, de um verde muito vivo, é de encher os olhos. Coisa linda!


O barco atraca em um porto distante 30 minutos de carro da cidade (táxi: R$ 35), pois as pedras impedem as embarcações de alcançarem a orla que banha o município. O Rio Negro tem dois humores bem definidos. Após horas de águas tranquilas, que formam um genuíno espelho d´água (vide fotos), pedras enormes se fazem presentes e corredeiras começam a pipocar pelo leito do Negro.

Nessa época, segundo os locais, as pedras deveriam ser mais visíveis, assim como várias praias. Mas, neste ano, o Negro está mais cheio que de costume, fenômeno que, infelizmente, não tenho bases para explicar. Nem eles.

Uma curiosidade: os rios amazônicos têm ciclos distintos. Enquanto na parte sul da região a cheia ocorre entre novembro e junho, no norte esse período é marcado pela seca, pelas águas baixas. Obviamente os rios do norte enchem no período compreendido entre julho e novembro. São Gabriel da Cachoeira está bem no norte, noroeste diria, da Amazônia.

Como era de se esperar, o calor aqui pega pra valer. Estou a exatos 25 km da linha do equador. O Sol escaldante é abrandado pelas chuvas diárias, que proporcionam minutos de frescor no caldeirão de umidade formado pela floresta. No entanto, já me acostumei ao clima local e não me incomodo mais com o bafo verde.

Falando da cidade em si, num primeiro momento o choque é inevitável. Os habitantes locais são índios em sua maioria, como já havia adiantado. São Gabriel é o município com a maior população indígena comprovada do país, 85% dos habitantes. A cidade tem quatro línguas oficiais: o português e as indígenas nheengatu, tukano e baniwa. Andando pela rua é fácil escutar os locais conversarem em suas respectivas línguas. Alguns têm inclusive dificuldade com o português.

A recepção aqui não foi calorosa, definitivamente. Não que nos tenha acontecido algum contratempo, longe disso, mas os olhares desconfiados e as expressões carregadas podem causar uma má impressão num primeiro momento. Como não poderia deixar de ser, há exceções que dão vida a alguns bons dias e escassos bate-papos. Mas é o jeito local, é preciso se habituar a ele.

Os índios, desde a chegada dos brancos, não tiveram e não têm vida mole. O cenário de suas vitórias e derrotas é colorido pela guerra, seja ela travada com as armas ou com a política. Eles foram obrigados a lutar para não serem extintos. Agora, lutam para obterem os mínimos direitos de um dito cidadão. Assim, é natural a desconfiança que nutrem em relação ao branco.

Nas conversas que tive por aqui, alguns afirmam que a vida era melhor antes da chegada do Exército. Outros pensam que as condições de vida melhoraram, como nas áreas da saúde e educação. É difícil defender uma posição com tão pouco tempo de vivência na cidade, por isso me abstenho de comentários sobre a refrega.

O que se percebe é que os índios se perdem facilmente quando passam a imitar um costume dos brancos: a ingestão de álcool. São muitos os que perdem o dia bêbados, deixando de lado sua raiz e assemelhando-se a um bebum qualquer, desses encontrados com facilidade em qualquer cidade convencional de nosso Brasil. É terminantemente proibido portar e oferecer álcool aos índios que vivem nas aldeias ou comunidades próximas a São Gabriel da Cachoeira, sendo a cadeia a pena para tal infração.

São Gabriel da Cachoeira é considerada ponto estratégico do Brasil, classificada como Área de Segurança Nacional, por fazer fronteira com Colômbia e Venezuela. Aqui situa-se a 2ª Brigada de Infantaria de Selva. Vocês conhecem essa Brigada, provavelmente já ouviram algo sobre a maestria de nossas Forças Armadas no combate de selva. Aqui é onde são realizados a maioria desses treinamentos. Que fique claro, a área da cidade não é fronteiriça a esses países, mas seu território, muito extenso, sim.

Tentaremos visitar uma comunidade indígena até sexta-feira, data de nosso retorno para Manaus. Para tal é necessário um contato com a FOIRN (Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro) e uma autorização da FUNAI (Fundação Nacional do Índio). A visita não é gratuita e receio que o valor possa ser proibitivo, o que seria uma pena.

Estamos hospedados em um hotel do Exército, hotel de trânsito para oficiais, que recentemente foi aberto ao público em geral. As diárias para casal custam R$ 60 (café da manhã incluso), e a estrutura oferecida conta com piscina, sauna, um mirante espetacular e muita tranquilidade, pois estamos sozinhos na hospedagem. Vejam as fotos da vista que nos abraça ao acordamos.

Pela manhã, várias canoas chegam à praia da cidade, trazendo índios de dezenas de comunidades que margeiam o Rio Negro. É o único serviço de transporte da região, e o mais utilizado da Amazônia, como já foi dito em outros posts. Escrevo aqui uma frase interessante que escutei, diferenciando os acreanos dos amazonenses: "O povo do Acre é o senhor das matas, enquanto o do Amazonas é o rei dos rios". Segundo me disseram, não há mateiros como os acreanos, conhecedores dos perigos e regalos da floresta como poucos. Já os amazonenses vivem em função dos rios, eles são sua fonte de comida, sua base de transporte, seu depositário de mitos.

Nos próximos posts falarei um pouco mais sobre São Gabriel da Cachoeira, além de relatar minha passagem pelo arquipélago de Anavilhanas, pelas matas e cachoeiras de Presidente Figueiredo e por Manaus, ponto de encontro das águas do Rio Negro e do Solimões, um espetáculo esplendoroso.

Até a próxima!

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Explicações

Olá meus caros! Peço desculpas pela falta de atualização no blog. Cheguei a Manaus na última sexta-feira. Fiquei aqui dois dias e parti para duas cidades com belezas espetaculares, Novo Airão e Presidente Figueiredo. A primeira guarda o segundo maior arquipélago de ilhas fluviais do mundo, Anavilhanas, que nessa época fica inundado pelas águas do Rio Negro formando imensos e maravilhosos igapós e igarapés. Simplesmente uma visão indescritível. Já Presidente Figueiredo nos espanta com caminhadas dentro da mata amazônica fechada, que nos guia até cachoeiras inacreditáveis. Perdão pelos superlativos, mas as fotos dirão se estou mentindo.

Não poderei descrever o que vi e o que vivi agora, pois estou preparando minhas coisas para rumar em direção a São Gabriel da Cachoeira, município com 90% da população formada por índios. Os outros 10% são não-índios em sua maioria ligados ao exército, devido à região ser área de fronteira com a Colômbia. Subirei o Rio Negro até seu último ponto navegável (ou primeiro, dependendo da perspectiva). Quando regressar, na próxima semana, postarei as fotos de Manaus, Novo Airão, Presidente Figueiredo e S.G. da Cachoeira.

Novamente peço desculpas pela falta de atualização e agradeço de coração a todos os comentários elogiosos e revigorantes, que me dão certeza de que tomei a mais acertada decisão de minha vida ao largar meu emprego e partir para essa jornada. Para os que me conheceram antes, digo que ao retornar encontrarão um novo Thobias. Até a volta!

sábado, 17 de janeiro de 2009

O Barco - Fotos 2

Yo

O Sol...

e a Lua.

Opa!

Aline


À esquerda, Rio Madeira, à direita, Rio Amazonas

Encontro do Rio Madeira com o Amazonas


O comando do barco


O conforto irresistível das redes

O Barco - Fotos 1

Partida para Manaus. Vista do Porto do Cai N´Água, em Porto Velho

Opa!

Carinhas de anjo, espíritos de porco!

Rio Madeira

O Barco

Cheguei ontem a Manaus após pouco mais de três dias de navegação pelo Rio Madeira e pelo Amazonas. A viagem correu tranquila, sem contratempos, excetuando-se a superlotação do barco. Mais de 200 pessoas num espaço diminuto, com capacidade para não mais que 150, apesar de a placa dependurada na embarcação afirmar que a capacidade era de 180 passageiros.

Um mundo confinado num espaço de pouco mais de 30 metros de comprimento por 8 de altura. Velhos, crianças, adultos, estrangeiros (um japonês, dois suíços e uma belga) misturados e convivendo juntos por horas e horas, o que tornou a experiência muito rica. No começo, todos recolhidos e discretos. Ao fim da viagem a privacidade encontrava-se fora da órbita terrestre e aquilo se assemelhava a uma excursão colegial.

Conheci pessoas dos mais variados quilates, cada qual com seu propósito. A maioria fez a viagem de barco por necessidade (para eles, o preço do avião é proibitivo) e apenas alguns gatos pingados por turismo.

O cotidiano do barco era assim: acordávamos muito cedo (nós, que estávamos na área das redes) devido à claridade e ao barulho do motor. Tomávamos o café e matávamos o tempo até o almoço. Alguns dormiam, outros bebiam, outros miravam as margens que introduziam a floresta. Muitos liam ou escutavam música. Eu fazia de tudo um pouco. As crianças não paravam, uma correria desenfreada pelo barco, o que tornava difícil a realização de tarefas que exigiam alguma concentração.

Após o almoço, a siesta era obrigatória. Acordava por volta das 3h e matava o tempo até o jantar. Haja assunto para conversas e letras para se ler.

A noite no meio da floresta é encantadora, pois o céu se revela sem o véu que as luzes da cidade aplicam-lhe inadivertidamente. Ambiente perfeito para pensar um pouco, refletir sobre nós mesmos. A noite foi o que mais me agradou na viagem.

Animais selvagens não foram avistados, apenas alguns botos. Mesmo com a mata abraçando as margens do Rio, os animais só se apresentavam ao tardar da Lua, o que impossibilitava sua visualização.

Interessante também foi conhecer algumas técnicas de navegação em grandes cursos d´água. A busca pelos canais profundos, a necessidade de se navegar próximo à margem que apresenta barrancos e não às que guardam uma topografia baixa, isso devido à profundidade, a leitura das águas pelos práticos (também conhecidos como timoneiros), a sintonia necessária entre a tripulação, o trabalho do farol na navegação noturna, a tensão proporcionada pelo encontro com balsas e outros barcos.

Bem, eu fui obrigado a dormir no chão. Quando embarquei a área das redes, no segundo piso, já estava completamente tomada, não havia espaço sequer para um palito de fósforo. Sorte que levo comigo isolante térmico e saco de dormir, o que foi a salvação da lavoura. Apesar do calor predominar durante o dia, à noite o frio pega e o vento sopra sem restrições. Havia comprado uma rede que foi utilizada apenas como travesseiro.

As condições do barco eram precárias. Dois banheiros para atender a toda essa gente. Vocês imaginam a aventura e o esforço demandados para banhar-se e descarregar a caçamba. A água do banho era retirada do Rio, e era barrenta. A fila na hora das refeições assemelhava-se à dos bancos em dia de pagamento do INSS, um exercício de paciência. A comida, apenas razoável. Ao menos a cerveja no bar era gelada (o terceiro piso do barco era um bar). Músicas de gosto duvidoso tilintavam incessantemente. Pela manhã, a paz de Jesus, à noite, o pecado do forró.

Confesso que a paisagem, num primeiro momento encantadora, tornou-se monótona, repetitiva. Além disso, as águas marrons do Madeira definitivamente não são um grande atrativo para os olhos. Mas o cenário muda de figura quando o barco alcança o Amazonas (vide fotos).

Porém, tudo isso, ao final da viagem, acabou relegado ao terreno das irrelevâncias.

O grupo ao qual fiquei mais próximo aglutinava uma miríade interessantíssima de personalidades. Apresento-lhes Lindenberg, cerca de 40 anos, amazonense e manauara, hoje crente, mas que começou a vida como ajudante de hippie, segundo contou. Não me perguntem qual o ofício de um ajudante de hippie, porque sequer sei responder o que um hippie faz. Talvez suas tarefas compreendiam entortar araminhos, catar miçangas e bolar o fuminho. Lindenberg retorna à sua cidade natal após anos de ausência. Morava no Acre, em Rio Branco, e o fim do casamento foi o motivo para a volta. Novamente me deparo com um sujeito falador, daqueles que gostam de proferir palavras sobre tudo e todos. Mas no fundo é um bom caráter. Tanto que se prontificou a nos apresentar Manaus, o que considerei um ato muito simpático.

Conheci também Silas, gaúcho, 41 anos, filho de um pastor luterano. O nobre morou em Manaus em 2001 e novamente pisa na cidade que ama, como ele mesmo declarou. Veio para concluir o curso de direito, o que demandará ainda dois anos. O cara é gente finíssima, astral, inteligente, astuto e um grande companheiro. Ele é daqueles tipos que inspiram confiança, tanto que deixaria uma fortuna aos seus cuidados com a plena certeza de que jamais seria enganado. Um pouco sistemático, mas afinal, qual gaúcho não é? Conversei muito com ele, principalmente sobre política, religião e o marco legal brasileiro. Aliás, acerca desse último assunto, mais ouvi que opinei. Um cara que vale a pena conhecer.

Arrastamos conosco ainda Curió, um japonês muito doido, chef de cozinha, que está viajando pela América Latina. Lógico que seu nome é impronunciável, assim, como o final se assemelhava a Curió, o apelidamos com essa alcunha. Tenho certeza de que ele ainda não sabe o que anda fazendo por aqui. Disse que seu objetivo é alcançar o Monte Roraima, fronteira com a Venezuela. Pensava que Roraima ficava na Venezuela. Tenho minhas dúvidas sobre o êxito de sua jornada, mas torço para que dê tudo certo com ele.


Há ainda Aline, gaúcha, 33 anos, escritora, editora e muito gente fina. Aventureira, estava na Amazônia em novembro com o intuito de realizar pesquisas para seu próximo livro. Voltou agora para visitar uma comunidade chamada São Gabriel da Cachoeira, localizada nos confins da floresta. É uma vila composta predominantemente por índios, próxima à região conhecida como Cabeça do Cachorro (pesquisem no Google e saibam mais sobre esse lugar, vale a pena). Acabei sendo agraciado. Ela ficou interessada pela mineirinho, e eu por ela, assim iniciamos uma trama que fez a viagem ficar muito melhor. Uma mulher muito inteligente, mas que ainda precisa ser apresentada a muitas realidades. Ontem, eu, ela e Lindenberg fomos a um boteco, o mais tradicional de Manaus, o Bica, ponto de encontro das cabeças irrequietas do Norte. No passado, era o local onde artistas das mais variadas estirpes se reuniam. Hoje, atrai turistas e locais, além dos remanescentes da época de ouro. Aline ficou encantada com o lugar, nunca tinha visitado um boteco de verdade. Não sei muito sobre ela, mas creio ser de família abastada. Assim, involuntariamente, acredito ter sido privada de certas experiências essenciais à vida dos homens. Mas hei de mostrar-lhe tudo que esteja ao meu alcance. Passamos a dividir um quarto de hotel, unindo o útil ao muito agradável. Ela convidou-me para ir a São Gabriel da Cachoeira. Não sei não, mas acho que Belém ficará para trás e partirei para a Amazônia profunda com a distinta e carinhosa escritora.

Travei ainda dezenas de outras conversas, como a que tive com o velho que certo dia foi a uma reunião da União do Vegetal, tomou ayahuasca e se viu perseguido por demônios; com o professor de história fanático pelo Lula; com o mineiro que veio para Manaus para recomeçar a vida; e assim outras tantas, que demandariam um esforço sobrehumano para escrevê-las.

Ao final, tudo deu certo e agora começo a desbravar Manaus. Nos próximos posts inicio o relato sobre a maior cidade do Norte do país, uma metrópole cravada no meio da selva que não possui estradas de acesso e que encanta pela receptividade de seu povo. Hasta!

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Próxima parada: Manaus

Embarco hoje para Manaus. A previsão de chegada é sábado. Confesso que estou apreensivo, diria inclusive com medo, mas já que me propus a conhecer essa região esse é o caminho certo. Estou com o pé atrás devido às várias histórias que escutei sobre as coisas que se passam no barco, principalmente roubos.

Me aconselharam a ir de rede, e o argumento foi justo: a cabine chama muito a atenção e caso o barco venha a ter problemas (afundar mesmo), na maioria das vezes quem está na cabine não tem tempo de sair.

Troquei minha passagem e consegui economizar uma grana, veremos se para o bem.

Serão cinco dias no meio da Amazônia, parando em diversos povoados ribeirinhos. Os barcos atracam nesses locais para pegar cargas, das mais diversas. A depender do movimento, a viagem pode chegar a 10 dias, mas também cair para três. Uma incógnita, na verdade.

A festa rola solta no barco, som o dia inteiro, me contaram. Nesse tipo de ambiente, onde o álcool comanda, todo cuidado é pouco, ainda mais em cima d´água. Tentarei passar imperceptível, mas, pelo visto, posso esquecer isso.

Embarco às 16h. Quando chegar a Manaus darei notícias. Estou ansioso pelos locais que cruzarei e pelas fotos que poderão ser tiradas, elas compensarão qualquer sacrifício. Então meus caros, hasta! Até daqui a alguns dias.

Parada: Porto Velho 5


Nome: Roberto Brega
Idade: Não revelada
Origem: Ceará
Profissão de coração: Cantor de música brega
Profissão exercida: Pedinte
Ídolo: Reginaldo Rossi
Objetivo: Comprar um teclado de forró (R$ 1.750, segundo informou)
Tempo de estrada total: 30 anos
Tempo de Porto Velho: 1 ano e meio
Tempo que não vê a família: 1 ano e meio
Características perceptíveis: Vaidoso ao extremo, persistente, manso (dorme em hotel e almoça em restaurante, mesmo vivendo de ajuda), articulado com as palavras.
Sonho: Tocar no Faustão e no Luciano Huck

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Parada: Porto Velho 4

Aqui no Rio Madeira, pertinho de Porto Velho, está sendo construída a Usina Hidrelétrica do Jirau. A energia produzida por Jirau, assim como Santo Antônio, outra usina programada para o Rio, abastecerá o sul do país (Sudeste, Sul etc). São mega construções de um setor fundamental da infra-estrutura de qualquer país, o energético. E o Brasil ainda leva pontos extras por se valer da energia hidráulica, menos poluente e mais barata que outras alternativas viáveis atualmente, como usinas térmicas ou nucleares.


Porém, todas as pessoas com as quais conversei não aceitam Jirau e Santo Antônio. Segundo elas, o Rio Madeira será desfigurado e destruído com as obras. Alguns afirmam categoricamente que o Rio não aceitará a violência e se vingará de alguma forma. "Ninguém pode com o Madeira, esse rio é violento, é foda, se quiser pode arrasar com tudo de um dia para o outro. Eu rezo todo dia pra ele acordar e mostrar quem é que manda", me disse Tino, morador e ativista local (ativista aqui não significa "ecochato" ou "sócio-estridente-falador-ineficaz-engajado", simplesmente é um cara que se movimenta, que faz acontecer).


É possível avistar a área das obras a partir do Porto do Cai n´Água. E todos afirmam que aquele local com destino firmado debaixo das águas do reservatório é um dos mais belos da região, com cachoeiras e pequenos rios puros, perfeitos para a pesca e banho.


O desenvolvimento trazido pela usina, desde a sua construção, não ameniza o impacto no coração do povo porto-velhense. Eles amam o Madeira, amam a floresta, a fauna, não querem ver mutilado um de seus maiores patrimônios, por qualquer motivo que seja.


Um boato que corre pela cidade é que, a cada explosão, a quantidade de ouro que se revela é impressionante. Segundo eles, somente esse ouro extraído na construção já pagaria a obra. Repito, é o que eles me disseram, não há como comprovar uma vez que a obra é inacessível para estranhos. Mas não é de se duvidar, Rondônia está sobre um dos subsolos mais ricos do país. Porto Velho foi criada devido à construção da Ferrovia Mamoré-Madeira, na virada do Século XX, e expandiu-se no decorrer dos anos com o garimpo. Nos tempos áureos, contam os moradores, pepitas gigantes de ouro brotavam das águas quase que espontaneamente.

Na verdade a frase que resume a aversão às usinas é essa: Mais uma vez os nortistas sofrerão para que o resto do país se beneficie. Quando o resto do país sofrerá em favor dessa gente?

Para deixar claro, não defendo nenhuma posição aqui. Tirem suas conclusões.

domingo, 11 de janeiro de 2009

Parada: Porto Velho 3 - Parte 5

O presidente do Galo, Edson, e Orlando, a malandragem em carne e osso


Bodó, o dono do boteco (esqueci o nome) e Robson

O boteco onde surgiu o Galo

Fotinhas da cidade agora. Universidade Federal de Rondônia.


Matriz de Porto Velho, construída em 1928. Notem que as autoridades da cidade não aconselham a entrada na igreja.




Sem querer imitar outros blogs, mas essa mereceu registro.

Av. 7 de setembro, centrão nervoso de Porto Velho. Ao fundo, a Amazônia. O Rio Madeira está entre a cidade e a floresta.

Crédito das Fotos: Thobias Almeida

Parada: Porto Velho 3 - Parte 4

A noite de sexta-feira terminou às 6h da manhã de sábado. Às 14h Robson passou no hotel onde me hospedo e rumamos para o bairro Caiari, o mais antigo e tradicional da cidade. Seria a primeira noite do Bloco do Galo da Meia-Noite no carnaval 2009. Sim, o carnaval em PV começou ontem.

Lá encontrei figuras da velha guarda da cidade, que fundaram o Galo, maior e mais tradicional bloco carnavalesco de PV, que chega a reunir mais de 50 mil pessoas nos dias de desfile. Ontem foi apenas uma concentração, e até o final de fevereiro o evento se repetirá, sempre aos sábados.

Conheci Bodó (nome de um peixe), figura carismática, panca de malandro, conhecedor das manhas e das manhãs, parafraseando Almir. Um dos fundadores do Galo. Histórias, histórias, histórias. Uma overdose de casos turbinados pela cerveja. Certo momento pensei: "Porra, um mineiro que chega em PV, sem conhecer nada, vir parar nessa boêmia é uma sorte danada". Bodó conversou muito comigo sobre a cidade, sua fundação, seu povo, seus pecados, suas virtudes. Se orgulhava muito de uma coisa: a união entre as pessoas. Segundo ele, quem aqui se fez não abandona o chapa de maneira alguma, pois companheirismo é coisa levada muito a séria em PV. Um caso, não o melhor, mas o que me lembro perfeitamente: "Um dia tinha bebido pra caralho num bar desses aí. Sem grana pra chegar em casa, resolvi dormir na casa de minha mãe, bem mais perto. Resolvi atravessar o Mucambo, a favela barra pesada da cidade, ia encurtar o caminho demais. Tinha uns dez anos que não ia lá. Na entrada do Mucambo um vagabundinho veio me intimar, perguntando o que eu tava fazendo ali. Mandei o moleque tomar no cu, mandei ele se criar primeiro. Ele arregalou os olhos com minha resposta e disse que iria me escoltar até o outro lado. O engraçado é que à medida que íamos andando todo mundo vinha me cumprimentar, 'e aí Bodó', e o moleque foi ficando besta de ver. No fim das contas descobri que ele tava mais sujo que poleiro de galinha com a turma da favela e eu acabei limpando a área pra ele. A moçada me viu com ele e amaciou, o desgraçado já tava com a cova pronta". Não anotei quase nada porque estava lá para me divertir, chapar uma com os tradicionais bebuns da área. E acho que se estivesse anotando algo a abertura deles comigo seria muito mais limitada.

Assim como Bodó conheci vários outros boêmios, todos da turma do Galo. Gente de tudo quanto é canto, não só de Porto Velho. Como já disse, PV é uma cidade de misturas. Desde sua formação, quando recebeu ingleses, espanhóis, jamaicanos e mais uma sorte de imigrantes, até sua consolidação, nos idos de 1970, vários povos aqui tomaram assento e formaram um caldeirão cultural que, sinceramente, ainda não tinha visto.

A bebedeira rolava solta quando apareceu uma figuraça. Já passava das 19h. A malandragem em pessoa, Orlando, carioca, morador de PV desde 1981. A história de sua chegada aqui é interessantíssima. Orlando é músico e certa vez veio fazer um show na capital de Rondônia. Se engraçou com uma menina e partiu com ela para um hotel. Iria tomar o avião de volta para o Rio às 18h. Mas se esqueceu de um pequeno detalhe: o fuso horário de Rondônia, 1h a menos que Brasília. Resultado: avião perdido e perdido ficou Orlando no aeroporto.

O show da noite anterior tinha sido um sucesso. O prefeito da cidade estava embarcando no exato momento em que Orlando estava pensando o que iria fazer. A grana era curta, não que ganhasse pouco, mas gastava muito. Aquela história, mulher, noite, parará, vocês sabem como é. Eis que o político o convidou para vir morar em Porto Velho, com emprego garantido na Prefeitura, desde que não cessasse a sua música. No melhor estilo porra-louca, Orlando sequer deu um tchau para sua família no Rio e na mesma noite já estava chapado em PV, destilando sua música.

O melhor vem agora: sabem com quem o sujeito tocava no Rio? Jorge Ben. Participou das gravações de Negro é Lindo, Tábua da Esmeralda, Solta o Pavão e outros discos. Orlando não era componente oficial da Banda do Zé Pretinho, era free lancer, convocado regularmente nos tempos de gravação de discos. Além de Jorge, tocou com Clementina de Jesus, Tim Maia e uma porção de músicos de alto gabarito, dos quais não me lembro agora. Sabem como é, àquela altura já estava arrumado. Ele disse que era parceiro do Tim Maia. Quando iam fumar um, na praia, Tim apertava aquela tora e, com a cabeça feita, não suportava ficar sozinho de jeito nenhum, sequer um banho no mar Orlando podia tomar sem ele. "O Tim era o homem mais medroso que conheci, isso com aquele tamanho todo", contou.

E assim foi a tarde inteira e grande parte da noite. Saí do Caiari depois das 23h. Chapado e tranquilo. Enfim Porto Velho se mostrou. Bem diferente do que imaginei e escrevi em posts anteriores. Uma lição aprendida: não emita opiniões antes de saber qual a composição do terreno em que você pisa. O tapa de luva será certo, assim como o que eu levei. Felizmente, para o bem.

PS: Após escrever isso tudo o cansaço chegou. No próximo post quero fazer um breve relato sobre Jirau, a hidrelétrica que está sendo construída no Madeira, próxima a Porto Velho. Os porto-velhenses não estão gostando nem um pouco dessa história.

Parada: Porto Velho 3 - Parte 3

Ao chegarmos à Calçada, o bar do Pimenta já estava fechado. Por sugestão do Robson sentamos no bar ao lado, após tentarmos entrar em uma das boates, todas completamente lotadas.

E quem é Robson? É um mineiro que há 22 anos vive em PV. O cara tem uma história de viagens e casos infinitos. É daqueles sujeitos que empenham sua palavra nos mais variados assuntos, colocando em dúvida a veracidade dos fatos. Num primeiro momento desconfiei de várias de suas histórias, mas com o passar do tempo a maioria delas se mostraram verdadeiras, via terceiros. Robson viaja pelo Brasil desde os 16 anos, conhece inclusive a região de Rio Piracicaba, minha cidade natal. Perguntei várias coisas a ele e obtive respostas corretas no ato. O distinto veio para Rondônia estudar. Antes morava no Mato Grosso. Antes ainda no Rio de Janeiro. E se contar que antes disso tudo ele residia em São Paulo, acreditam? Esses são apenas alguns das dezenas de lugares pelos quais passou. Uma das maneiras de comprovar as andanças de Robson são as conversas que ele trava com os forasteiros de PV, pessoas de outros estados que para cá vieram. São maioria na cidade, oriundos do Ceará, Rio, Rio Grande do Sul, Minas etc. E não é que Robson conhece detalhes impressionantes de todos esses lugares? Nomes de ruas, de bares, de comidas, de estradas, de cachoeiras, inclusive de pessoas. O cara carrega traços de uma enciclopédia do Brasil. Lógico que ele aproveita esse conhecimento para dar ênfase às suas odisséias, mas não importa, isso não tira seu valor.

Seu estilo é o do boa praça, conhece praticamente todos em Porto Velho, não dá dois passos sem ser abordado. Tem um passado não tão feliz na cidade. Se enveredou pelo caminho errado, foi fraco, perdeu a esposa e os bens que havia conquistado. Ele foi o primeiro a trabalhar na cidade com aparelhos de ar-condicionado Springer, marca conceituada no mercado. Depois dessa informação fiz de questão de atentar para a marca dos aparelhos e não é que a maioria é Carrier Springer? Ele fez um ótimo pé-de-meia à época, quando chegou a comandar 70 funcionários. A história completa não me foi dita, mas sei que ele foi enganado pelo sócio, perdendo mais de R$ 170 mil, o que o deixou um ano trancado em casa vítima da síndrome do pânico. Hoje já está recuperado, completamente. Mas financeiramente não, sendo que no exato momento se prepara para iniciar um novo negócio. Tomara que dê certo.

Sobre Eugênio e o índio Raimundo não posso dizer muito. Eugênio ficou muito pouco tempo conosco e Raimundo é introspectivo, o que dificulta conhecê-lo. Mas percebe-se que é um sujeito de bom caráter e de conhecimento profundo sobre sua terra.

Após mais algumas cervejas (provavelmente já havíamos bebido mais de 40) na Calçada da Fama eis que surgem mais duas figuras. Primeiro Marcelo, policial militar e grande amigo de Robson. Doidão e PM amigos, sem problema. Marcelo deve ter uns dois metros de altura e pesar uns 140 quilos. Foi ele quem deu o primeiro passo para cairmos de cabeça na cachaça. Foram várias, fazendo com que a conversa atingisse vários decibéis. Depois apareceu Júlio, um boliviano que faz tempo vive em PV. Júlio é músico, e segundo me disseram, um dos mais conceituados de toda a região Norte. Foi durante anos diretor do Sesc em PV e é intimamente envolvido com a cultura da cidade.

Júlio já passou dos cinquenta, cabelos brancos, óculos, camisa social para dentro da calça. Alinhado. Quem vê não imagina que o cara é um ícone dos roqueiros da área. Deu aulas para vários moleques que hoje dominam a cena da capital. Júlio é guitarrista e apaixonado por Carlos Santana. Infelizmente nesse dia ele não deu nenhuma palinha, uma pena. Ainda assim a conversa com ele foi fenomenal. O cara me deu uma aula de barroco, me explicou a riqueza de Bach, Beethoven, da música clássica religiosa e folclórica, além de dar uma explanação excelente sobre a América Latina e suas desavenças. Uma de suas frases: "Estude como se fosse viver eternamente, e viva como se fosse morrer amanhã". Sem dúvida uma pessoa muito rica.

Parada: Porto Velho 3 - Parte 2

Depois de minha intervenção o papo deslanchou. Conheci o maluco Lord Byron (vulgo Jorge), Robson, que viria a se tornar meu guia em PV apresentando-me lugares e pessoas de raízes genuínas, Eugênio e o índio Raimundo, de Manaus, que todo mundo chama de Índio mesmo.


Bebendo com essa galera (como todo dono de boteco que se preze, Pimenta intervinha pontualmente no papo, sempre com um ar, verdadeiro, de grande conhecedor da região amazônica, não só de Rondônia).

Minha intenção era beber algumas no bar e depois cair numa das boates da área. Já tinha em vista uma especificamente, que tocava rock. Mas meus planos foram totalmente modificados pela turma. "Nada disso cara, ali você já conhece, é a mesma coisa aqui ou em BH. Vamos te levar no Mandacaru, aí sim você estará em Porto Velho". Hesitei no início, mas depois de olhar na direção do Pimenta tive o apoio de que precisava. Ele simplesmente balançou a cabeça positivamente, dando o aval para que eu seguisse com a malucada. E uso malucada no sentido literal, pois os caras jogavam pedra na Lua e juravam que tinham acertado.

Dois deles foram de moto e eu e Lord Byron fomos de táxi. Byron é neto de um ex-governador do estado, mas como resolveu beber e curtir a vida sem freio, creio ter sido renegado pela família. Casou com 20 anos, quando estudava filosofia em Manaus, com uma piauiense, e para lá rumou com sua paixão e coragem típicas da juventude. Largou tudo. Quando voltou já não gozava mais da guarita de sua família. Bem, se Byron foi realmente renegado eu não sei, mas essa percepção vem do fato dele pertencer a uma família rica e não ter grana nem para um cigarro, quanto mais para o táxi. Atualmente mora com a mãe, apenas os dois, e creio ser essa sua única função, fazer companhia à mãe, pois trabalho também não tem. Ainda assim é uma grande figura, sem dúvida, inteligente e divertido. E o fato de pertencer a uma família tradicional se comprovou com as conversas no bar, em que todos confirmaram a sua condição.

Retomando a jornada noturna, desembarcamos no Mandacaru. O local tem ares rústicos, com paredes de madeira e cobertura de palha, se não me engano. Não possui paredes internas, formando assim um ambiente interno amplo, composto por mesas e a pista de dança, embalada predominantemente pelo forró, mas que também abria espaço para outros ritmos. O engraçado vem agora: a média de idade dos frequentadores era 50 anos, no mínimo. Paquerar uma gatinha no local é inimaginável. Mas tudo bem, ali era um local tradicional da cidade e eu queria isso, conhecer PV uterinamente.

Dancei umas quatro músicas com uma parceira desse calibre, uns 50 anos, e dancei bem, segundo ela me disse. Forró roots mesmo, um pra lá um pra cá, sem esse negócio de girinho, voltinha, cirandinha e o caralho a quatro. Acredito que meus passos desinibidos se deram em função do álcool, que àquela altura já dominava minhas ações.

Ficamos no Mandacaru cerca de três horas e depois retornamos para a "Calçada da Fama". Já passava das 3h da madrugada.

Parada: Porto Velho 3 - Parte 1

Buenas meus caros! Trago ótimas notícias, enfim consegui me infiltrar na vida real de Porto Velho. Tudo graças ao bar, esse antro abençoado de possibilidades infinitas. Contarei tudo em detalhes, em posts seguidos e conectados. Travei conversa com vários personagens, inclusive Orlando, um carioca que aqui chegou em 1981 e que, em minha opinião, guarda a história mais interessante.

Quem vem acompanhando o blog leu que minha idéia era pegar um cinema na sexta-feira, visto meu total deslocamento na cidade, não conhecendo nada nem ninguém em PV (como usamos BH em Minas, aqui usa-se PV). Bem, minha alma chorou quando rumei para o cinema e gritou com toda força: "Porra, você está em um lugar totalmente novo, diferente de tudo que viu, e vai para o cinema? Que espécie de merdinha é você? Ponha a cara na rua e descubra, seu trabalho é esse!".

Devido a esse singelo diálogo interior, desisti de assistir "O Dia em que a Terra Parou" e saí, caminhando. Depois de rodar por uns quarenta minutos por uma parte da cidade que ainda não tinha visitado, deparei-me com uma quadra que abriga diversos bares e que, depois viria a saber, tem a alcunha de "Calçada da Fama". Enfim havia descoberto o local do movimento (no bom sentido). Nesse quadrado do álcool há bares e boates, estabelecimentos chiques e outros mais amenos, mais informais. Puxei uma cadeira no bar do Pimenta, pois o local era o mais voltado para o estilo boteco, o que se confirmou posteriormente. Uma porta, salgados velhos na estufa, banheiro apertado, coroas enchendo a caneca, todos zoando todos no cubículo de paredes bicolores, laranja e branco. Tomei assento em uma mesa na calçada e logo chegou o Pimenta, um senhor de uns 65 anos mais ou menos, grande simpatia e riso farto na cara. Pedi uma cerveja e acendi um cigarro.

Por 1h fiquei assim, sozinho, fumando e bebendo, assistindo a maneira como os porto-velhenses aproveitam a noite. Foi quando começou uma baita chuva, a tropical de verdade, grossa e rápida, suficiente para molhar tudo e todos num piscar de olhos. Busquei refúgio no interior do Pimenta (sem maldade, por favor), que já se encontrava empapuçado. No meu canto, ainda calado, observava as brincadeiras entre os amigos quando a deixa maior foi dada: alguém tocou no assunto Atlético Mineiro. Como o pistoleiro mais rápido do oeste, disparei certeiro: "Do Galo eu entendo, sou do terreiro das Minas Gerais e atleticano puro-sangue". A partir daí minha estada em Porto Velho deu uma guinada.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Parada: Porto Velho 2

Ah!, já era tempo. Enfim o sol nasceu grosso em Porto Velho, na potência máxima. Dei uma caminhada de umas duas horas pela cidade e a percepção exposta no último post se confirmou. As coisas por aqui são difíceis. Comprei o jornal local, "O Estadão", e o que vi? Anúncios de corte de energia em diversas cidades de Rondônia, como em Buritis, Ariquemes, São Miguel, Espigão do Oeste, Pimenta Bueno e Ji-Paraná, todas cidades importantes do estado (passei pela maioria delas, o ônibus cruza Rondônia de ponta a ponta).

Ontem não consegui me infiltrar na noite porto-velhense (perguntei para dois nativos o gentílico de Porto Velho, mas eles não souberam responder, assim apelei para o google), e creio que dei sorte. Devido ao meu cansaço decorrente de mais de um dia de viagem, apaguei. E hoje fiquei sabendo que a noite do porto, onde pretendia me embebedar após receber a dica de um taxista, é sujeira, lugar da malandragem e putaria. Cairia numa furada. O pior é que não avisto nenhum lugar onde possa me divertir um pouco. Em frente ao hotel onde me hospedo (R$ 25 diária com café e TV) há um cineminha. Hoje estréia "O Dia em que a Terra Parou", com Keanu Reeves. Na falta do que fazer, vou assistir. Deve ser uma porcaria, mas quem sabe é lá o local onde a juventude daqui se reúne?

Já tentei descobrir um barzinho, uma casa de show, uma boate, qualquer coisa, mas ninguém sabe me indicar nada. Acho que a população porto-velhense não é notívaga, prefere o dia de sol e chuva. Sim, pois ao iniciar este post o sol rachava a terra, agora a chuva já inundou as ruas.

Ainda com relação à cidade, até que o comércio é variado. Na medida do possível, encontra-se de tudo. Porém, há lojas bonitas ao lado de lotes vagos, cobertos de mato. A impressão é que somente agora a cidade vivencia o crescimento. Vários prédios estão em plena construção, ao mesmo tempo que ruas de terra ainda sujam os sapatos dos pedestres. A área do porto, cujo nome é Cai n´Água, se divide em duas: uma bem precária, semelhante às zonas periféricas dos grandes centros urbanos, e outra abarrotada de barracas que vendem cerveja e comidas variadas. Experimentei um tambaqui delicioso ontem. Mas como já disse, ao cair da noite é melhor evitar o local.

Pela tarde tirarei algumas fotos da cidade e as postarei no blog. Até mais.

PS: Quero fazer um agradecimento à internet. Somente graças a essa invenção magnífica consigo manter contato com todos e ainda por cima escutar o grande e cavernoso John Lee Hooker, para tirar um pouco de calypso do ouvido. Obrigado tempos modernos, ao menos isso você trouxe de bom.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Parada: Porto Velho

Rio Claro, Chapada dos Guimarães


Arara Azul, Pantanal.


Pôr do sol no Pantanal



Crédito das Fotos: Thobias Almeida

Cheguei hoje, 8 de janeiro, a Porto Velho. Passei 26 horas dentro de um ônibus da Gontijo e tive o primeiro aperto no coração. Um pneu estourou e o veículo não perdeu o controle por pouco. Ficamos parados por 1h até que conseguissem colocar tudo em ordem. O motorista, há apenas sete meses na empresa, não sabia realizar a tarefa. Os passageiros botaram a mão na massa e tudo correu bem, na medida do possível.

Assim que cheguei à capital de Rondônia a chuva amazônica desceu forte do céu e aplacou o calor, que dizem ser insustentável. Estou com sorte. Passei três dias em Cuiabá e o chão não ferveu como de costume, disseram-me os habitantes da cidade. Na capital do Mato Grosso fiquei hospedado na casa de meu grande amigo e conterrâneo Luizinho, que divide uma confortável residência (uma mansão, deixemos a modéstia de lado) com um gaúcho e quatro chineses, bancados pela empresa em que trabalham.

Os chineses merecem um parágrafo à parte. Falam um inglês tosco (não que o meu seja grande coisa, mas é inglês, até onde sei), têm entre 20 e 25 anos e permanecem rindo o tempo todo. Fizeram questão de preparar um jantar no dia em que cheguei. O cardápio foi arroz, frango, carne de boi, batata assada (mas preparada de uma maneira diferente), peixe, amendoim frito e uma parada que não tive coragem de experimentar, tudo muito apimentado. Os costumes dos chinas à mesa deixariam qualquer professora de etiqueta de cabelo em pé. Não os classifico como porcos, pois cultivam outros hábitos e costumes, porém, à vista ocidental, causam certo asco. Arrotos, peidos e cusparadas são comuns, e indicam satisfação com a refeição. Os ossos do frango são cuspidos direto no chão, assim como o vômito ocasionado pela bebedeira. A cerveja em lata é bebida quente (esses chinas são loucos, cerveja quente em Cuiabá, a cidade mais quente do Brasil?). Tive de sorver quatro ferventes latas de Skol, horrível. São preocupadíssimos com dinheiro e não gostam de trabalhar, ao contrário do que imaginamos, aliás, pelo que me disse Luizinho, se parecem mais com baianos nesse quesito.

Durante a viagem presenciei várias histórias no ônibus. Dentre elas, a de um senhor que iria até a capital de Rondônia para tratar dos rins (carregava uma bolsa de urina pendurada na cintura, o que limitava muito seu conforto, mas fazia questão de fumar comigo em todas as paradas e disse que o cigarro não havia sido proibido pelos médicos, o que duvido muito); um homem na casa de seus 40 e poucos anos que escoltou sua mulher, já beirando os 60, até BH para a retirada de um tumor, mas, chegando às Gerais, os médicos disseram que o tumor havia desaparecido; uma coroa que se não me falham os instintos era puta, isto devido aos seus trajes, maquiagem e a maneira oferecida de olhar para minhas pernas, denunciando que aquele flerte tinha endereço certo: uma transa na parte de trás de qualquer parada empoeirada da estrada e R$ 20 ou R$ 30 em suas mãos. Felizmente, eu dormi. Assim como esses, vários outros personagens pipocaram no ônibus, cada qual com sua grande e inigualável história para contar.

Continua chovendo forte em Porto Velho. A cidade não causa uma boa impressão à primeira vista. A falta de infra-estrutura é gritante, pois em pleno centro comercial há ruas de terra. As pessoas são em sua maioria morenas e troncudas, logicamente de fenótipo indígena. Há uma ou outra que foge dessa aparência. E como eu fujo, e muito, sou olhado como um E.T. pelas ruas. Aqui praticamente não há turistas, ao menos não vi nenhum.

Tive uma desagradável surpresa: ficarei por aqui até terça-feira, única data disponível para tomar o barco rumo a Manaus. Isto porque quero comprar uma passagem na cabine, devido à minha câmera e outros pertences de valor. Nas redes o sono não flui com tranquilidade, é um olho no sonho e outro na mochila. Assim, desembolso R$ 200 a mais por cinco dias de pleno conforto e regozijo em plena Amazônia, descendo o Rio Madeira. Dizem que o barco é agitado, e pude perceber isso hoje no porto. Todos apresentam potentes caixas de som que tocam sem dó o calypso, não a banda, quer dizer, ela também, mas trato aqui do estilo. Veremos o que acontece.

Até terça-feira terei tempo de postar todos os dias, pois pelo visto não há muito que se fazer em Porto Velho, ainda mais estando sozinho. À noite descerei ao porto e tomarei um porre, estou precisando. Vou um pouco preocupado, por mais que me tenham dito que a cidade é tranquila. Sozinho a conversa é outra. Assim, carregarei comigo minha super faca Spanta Brigator. O pior é que tenho certeza que não terei coragem de usá-la caso seja necessário. Ao menos, sinto-me mais seguro assim.

Na medida do possível publicarei mais fotos da viagem no blog. Ainda não fotografei Porto Velho devido ao mau tempo. Assim que o fizer, disponibilizarei as fotos.

Até amanhã.