quarta-feira, 23 de maio de 2007

Cânforas e Mentiras


Aquele sujeito sabia realmente o que procurava. Buscava simplesmente não desejar mais nada, viver numa flutuação irresponsável e sem maiores objetivos, apenas acordar e realizar as mínimas tarefas necessárias à manutenção da vida. Aliado a isso, guardava também a intenção de desfrutar e sentir o mundo, apreciá-lo, analisá-lo, sofrê-lo, escorregar por entre as vielas desconhecidas da próxima parada.


Era ainda jovem, mesmo carregando cinqüenta e sete anos na mochila. O hábito no qual ficava mais evidente a sua presilha infanto-juvenil era o pacote de cânfora que sempre levava consigo, não importando para onde se dirigia, trabalho, bares, viagens, casa da sogra etc. Carregava-o pelo fato de estar impregnado em sua memória o conselho de sua avó, ainda proferido quando este possuía augustos seis anos de idade.


- Meu filho, não há nada melhor para tratar um machucado dolorido que cânfora. Lembre-se disso, é a única coisa valiosa que lego a você nessa vida.


A avó sabia ao certo as características do neto, agitado, impaciente, irrequieto, turbulento, sempre a andar com os joelhos esfolados, as pernas doloridas por alguma pancada, fruto de uma brincadeira mais ousada.


E ele não conseguia distinguir claramente o que o levava a seguir esse conselho tão a sério, num ritual quase litúrgico, infalível, certeiro como o sol que salta por detrás das montanhas todas as manhãs. Ora, já era um homem formado e maduro, com responsabilidades bem definidas, possuidor de distintos cabelos prateados a marca-lhe a idade. Por que até hoje seguir um conselho oferecido pela avó, há cinqüenta e um anos atrás? Há muito havia desistido de entender essa sua peculiaridade, passou apenas a respeitá-la.


Bem, a mochila encontrava-se arrumada, perfeitamente acomodada na traseira de sua Harley, moto não muito nova, mas ainda confiável e valente. A esposa o fitava com os olhos marejados, e o pior é que não suspeitava das reais intenções de seu atual ex-marido, que era partir rumo a um lugar que nem ele próprio sabia qual era. A ela disse que aquela seria apenas uma viajem rápida, de uma ou duas semanas no máximo.


Separou o pacote de cânfora cuidadosamente, prendeu-o ao banco da Harley de modo a torná-lo facilmente acessível caso fosse necessário utilizá-lo, abotoou o capacete em seu pescoço barbudo e engatou a primeira. O cheiro do motor pulsando e cuspindo o vapor quente e lubrificado do motor era inebriante para aquele recém-inaugurado viajante sem destino. A partir de agora tudo adquiriria uma nova textura, um novo gosto. Uma vívida sensação refrescante havia tomado seu corpo. Assim como uma criança que recebe um presente, deitou um sorriso largo em seu rosto.

Porém, ele ainda não estava completamente livre, tinha que cruzar as ruas de sua cidade até pegar a auto-estrada. E foi nesse trajeto insignificante, ante as distâncias que planejou percorrer, que o infortúnio pediu um lugar à mesa. Numa curva ordinária qualquer, construída com o asfalto duro dos novos tempos espinhosos, o pneu de sua moto suavemente escorregou. Um veículo vinha em sentido contrário, seu corpo foi jogado para debaixo daquele carro. Atropelado, esmagado e ensangüentado, praticamente morto, visualizou o pacote de cânfora ainda amarrado ao banco de sua moto. Antes do último suspiro, balbuciou com extrema dificuldade:


- Vovó, a senhora mentiu.