quarta-feira, 17 de maio de 2006

O Elevador


Trabalhava como copeira em um prédio luxuoso da cidade. Para chegar ao trabalho, tinha que acordar às quatro da manhã, tomar dois coletivos e ainda caminhar por vinte minutos. Saía de casa sem comer nada, pois a pouca comida era destinada ao café da manhã de seus filhos, mantidos com muito esforço na escola pública da periferia onde vivia. Seu marido há muito a abandonara, se para o bem ou para mal não sabia, violento alcoólatra que era.

Chamava-se Lúcia. Já ultrapassara a barreira dos quarenta anos, porém aparentava muito mais devido ao corpo franzino e encurvado, ao cabelo ralo e desarranjado e à face profunda, vincada e sofrida. Muitas vezes já havia pensado em desistir, mas o instinto materno nessas horas sempre prevalecia.

Num dia qualquer, melancólico como todos os outros, adentrou o hall térreo do rico prédio onde trabalhava e notou que o porteiro, nordestino e desafortunado como ela, não se encontrava em seu posto. Pela primeira vez em sua vida resolveu ousar, ir contra as regras que sempre lhe foram impostas, sentir-se gente.

Em dez anos de serviço, nunca havia apertado o botão do elevador social. Aos subalternos, como de praxe em todos as moradas suntuosas, era reservado o elevador de serviço. Apertou-o agora. Sentiu pela primeira vez a sensação de poder, e gostou.

Caminhou de cabeça erguida elevador adentro, notou um cheiro perfumado que tomava conta do ar. Cheiro das madames, raciocinou. Depois, pomposamente, levou o dedo indicador direito ao número dez do painel, andar em que trabalhava.

A subida iniciou-se e alguns segundos depois ouviu em estalo muito forte, como se algo estivesse se partindo. Mais um pouco e de novo o estranho barulho. Não havia passado do segundo andar e deu-se com a coisa: o cabo de sustentação do elevador estava se partindo. Assim que completou seu pensamento, iniciou-se a queda brusca.

O elevador, juntamente com Lúcia, espatifou-se no fosso do prédio. Amontoaram-se o ferro retorcido e o corpo dilacerado da copeira. Morreu no elevador social, sem ultrapassar sequer o segundo andar.

Os Selvagens


Viviam há muito pelas calçadas da cidade. Marquises eram transformadas em telhados, jornais em cobertores, esquinas em banheiros e a vida seguia sem rumo, sem utopias, sem expectativas. A comida, geralmente sobras, tinha um gosto azedo, gosto de miséria. O sentimento de pertencer à espécie humana já não mais existe, pois em animais haviam se transformado há vários invernos. E como animais, o instinto básico e primordial de sobrevivência era o que os mantinham vivos, o que os impulsionavam. Num belo dia de fome, frio e desespero, o macho dominante do grupo avista uma presa. Mulher, rica e indiferente. Uma presa despreparada, que foi arrastada subitamente para a realidade do mundo após sentir o gelado cano de uma arma em seu pescoço. A caça estava completa, mais um dia de sobrevivência para o grupo estava garantido e mais uma presa, atordoada, refugia-se em sua jaula doméstica e clama aos deuses para que a horrível sensação da morte nunca mais a aflija. E assim chega ao fim mais um dia na selva.

O Primeiro Dia da Vergonha


1° de janeiro de 2003. O suposto dia da redenção, onde um habitante advindo de nossos porões sociais escala impavidamente a rampa, afeiçoado a um alpinista que acaba de conquistar o cume do mundo. Macacões transformaram-se em ternos e palavras de ordem em domesticados discursos. Se antes as mãos eram maculadas pela graxa, agora elas têm o poder de tingir o futuro do Brasil.

A minha frente encontra-se uma revista datada de janeiro de 2003, cuja edição foi toda ela dedicada ao triunfo dos esfolados. Percebo claramente como somos inaptos para analisar o presente. O roteiro da decaída estava ali, disponível aos olhos do mundo, e escusando os contrários histórico-ideológicos, ninguém conseguiu farejar o podre odor da vilania, da corrupção e da ganância desmedida pelo poder.

Era tudo muito colorido, muito eufórico, um caldeirão de esperanças que não é bem-vindo em nenhuma ocasião. O torpor emocional bloqueia a razão e assim a confiança cega guia-nos terminantemente à navalha. A dúvida, ingrediente indispensável na análise de um contexto, investigadora suprema das vielas da vida, era artigo raro no Brasil àquela época. Como exemplo, reproduzo as deslumbradas letras impressas na capa do veículo: “O Brasil que Virá”.

Atento-me agora a duas fotos presentes no interior da publicação. O super-presidente jactava-se num aceno que denotava o futuro. Desembarcando de um carro aristocrático, um Rolls Royce, cercado por uma maré negra de seguranças e tendo o povo a seguros metros de distância, Vossa Excelência subiu o aclive acompanhado por um companheiro-empresário, ou melhor, um empresário-companheiro.
O parceiro de antigas lutas, que ganhou ares de primeiro ministro, vinha atrás, como que na organização e fiscalização de todo o processo, trajando uma longa e cerrada vestimenta escura, metaforicamente perfeita para se esconder as violações morais, legais e éticas que propiciaram a ascenção da estrela.

Ah, o povo! Este também compareceu, predominantemente vermelho, e saudou como nunca a chegada do salvador. Lágrimas, sorrisos, orgulho, revanchismo, emoções incontidas que formaram um espetáculo de louvor poucas vezes oferecido aos deuses. Alguns se jogaram nas águas do lago, que agora sabemos serem inadequadas para o banho de homens dignos. Mas o povo real, apolitizado, tomou a atitude que dele se esperava, uma massa remoída pelo sofrimento que finca vigília aos pés do primeiro profeta disponível.

E então têm-se em outra página a foto de uma rapoza ligeira da política, numa imagem inquietante. As mãos estão posicionadas como que indicando calma e vagar nas conclusões, com as palmas à mostra, num sinal de pare. A sua feição apresenta sombrancelhas levantadas, olhos arregalados, transmitindo perspicácia e atenção com relação aos acontecimentos. A barba longa e branca omite a sua boca, mas confere sapiência à composição final do quadro. Fala-se de quem?
Pasmem, mas a foto é de Fidel Castro, o último revolucionário, ainda hoje comandante da antiga ilha da fantasia, que hoje se transformou na ilhota dos silenciados. Não sei se coincidência ou não, pois Fidel não estava presente na posse e a foto era de arquivo, mas a publicação justamente desta imagem foi o alerta mais gritante de todos. Até o mistério quis nos avisar.

Outubro aproxima-se, a vontade popular novamente será testada e a única coisa que espero é que daqui a quatro anos eu não me depare novamente com uma revista, datada de janeiro de 2007, retratando este mesmo enredo peçonhento e lastimável.

sábado, 13 de maio de 2006

O Craque


O Brasil, sem dúvida, é o país onde quase a totalidade da população compartilha a mesma religião: o futebol. Para nós, seres inferiores não agraciados com a plasticidade da técnica, o perfume da agilidade, a poesia do raciocínio que busca o impossível e o inimaginável, resta matar a sede futebolística nas famosas peladas. E foi numa dessas peladas que presenciei uma obra-prima.

Era uma quarta-feira de noite fresca e límpida, condição perfeita para o desenrolar de um jogo de futebol. Pior para as estrelas, que pela primeira vez se envergonharam, pois tiveram seu brilho totalmente ofuscado por aquele jogador. Uma figura que não despertava qualquer suspeita, que à primeira vista parecia também um habitante do cretino mundo dos quase bons de bola.

A mim coube jogar um pouco mais defensivamente, já que meu preparo físico não anda lá muito apurado. O azar de um milhão de homens parecia ter caído sobre meus ombros, pois o iluminado acabou jogando no time contrário. Após esta partida meu desejo de jogar bola secou como uma poça d´água no deserto, pois percebi a mediocridade de minhas habilidades futebolísticas.

O craque destruiu-me, humilhou-me, ia e vinha quando queria, passava a bola por entre minhas pernas, fazia-a voar sobre minha cabeça numa parábola perfeita, efetuava elásticos, corridas incrivelmente rápidas, cortes secos, chutes bombásticos. Era como se a polícia de uma cidade interiorana, munida de simples revólveres, estivesse confrontando-se com o exército americano numa guerra. Uma assimetria de qualidades absurda.

E, devo dizer, não fui só eu o esfolado, uma vez que todo meu time foi subjugado, torturado, infantilizado e ferido de morte. Um massacre, onde pela primeira vez presenciei um jogo de futebol de um contra sete, um autêntico e acachapante espetáculo.

Mas o tiro de misericórdia ainda estava por vir. Já exausto e ligeiramente contrariado, numa das raras vezes em que consegui possuir a bola em meus pés, arrisquei um lançamento. Obviamente a tentativa foi mal sucedida, e a bola foi rebatida pela defesa adversária na direção do ataque. Meu Deus, aquilo foi incrível!

O chute veio com bastante potência, a bola flutuava nervosa no ar e seguiu galopando na direção do gênio. Pensei: “Essa será impossível de ser dominada”. Ledo engano.

Assim como um amante acolhe sua dama em seu peito, ele estufou a caixa torácica e magistralmente amorteceu a esfera, que iniciou uma subida rente ao seu corpo. Quando esta se encontrava a uns dois metros e meio do chão, geometricamente acima de sua cabeça, iniciou-se o vôo.

Suas pernas bailaram no ar, o corpo parecia estar suspenso por magia, praticamente paralelo ao chão. Não, não foi uma simples bicicleta, e creio que não existam palavras para descrever tamanha magnitude. O chute saiu perfeito, exatamente no vértice das traves, lá onde a coruja dorme.

A bola estufou as redes com violência e depois escorreu macia pela rede, dando a impressão de ter alcançado o gozo supremo devido ao imenso carinho com que foi tratada. Ela permaneceu quieta e brilhante no fundo do gol e ninguém teve sequer a coragem de tocá-la novamente com o temor de maculá-la. A pelada então foi encerrada.

Nós, pobres mortais, fomos arrebatados primeiramente pela perplexidade, que se transformou em admiração, que fez brotar no ar palmas de veneração. Mas uma eternidade de palmas ainda não faria jus à monumental criação.

Parabéns ao craque!

A Dama Fúnebre


“Sou, na verdade, o Lobo da Estepe, como me digo tantas vezes – aquele animal extraviado que não encontra abrigo nem ar nem alimento num mundo que lhe é estranho e incompreensível”. (Hermann Hesse, O Lobo da Estepe)


Estas mal talhadas letras desta vez procurarão tratar da bruma perpétua dos homens; as palavras aqui marcadas terão por assunto algo não desejado e não suportado pela maioria, a solidão.

Estar só, no raciocínio coletivo, invariavelmente significa melancolia, tristeza, fracasso. Mas esta é uma idéia equivocada e confortável, digna de covardes.

A cabeça carente de inteligência, ou de coragem, procura incansavelmente o morno afago da massa. Segue no mesmo rumo do rebanho, das procissões e peregrinações que conduzem a signos vazios. As multidões trazem segurança, porém decepam a autonomia do ser. Quem assim se comporta simplesmente senta-se à margem das correntes da vida e, placidamente, seca.

Somente quando estamos acompanhados da solidão conseguimos realmente conhecer-nos. Seu violento golpe reduz as máscaras a pó, descarna brutalmente nossa face e expõe os grotões de nosso cérebro, colocando-o nu, assim como as virgens das ruas.

São nestes grotões que se refugiam os pensamentos proibidos, os preconceitos, o flanco ardiloso do homem, o egoísmo, a maldade. Sim, deparar-se repentinamente com o lodo humano é sufocante. As veias são entupidas pela náusea e o coração é arrebatado pelo breu. A sensação do abismo aos seus pés ganha forte contorno, e o vôo cadente parece implacável. Esta dama fúnebre chamada solidão, quando se apossa de um espírito frágil, fere de morte suas entranhas e sua mente.

Neste instante se diferenciam os leões dos vira-latas. Os indivíduos de brio aceitam a passagem oferecida pela solidão com destino a podridão, e dela se nutrem, dela extraem sabedoria. Alcançado o âmago do ser, o mundo se revela diante dos olhos. Monstruosidades se fazem normais, desvios ganham direção, a loucura equipara-se à sanidade. O certo e o errado se dissolvem, a pedra muta-se em isopor. É o amadurecimento da mente.

O solitário já não se prende a convenções, esquemas, regras e condutas; ele simplesmente segue seu mapa traçado nas estrelas. E nessa rugosa jornada, enganam-se os que pensam que o amor é impossível, pelo contrário. A solidão exacerba a potencialidade do amor, sentimento que arde como fogo quando não correspondido, mas que definha friamente com a posse do ser desejado.

A companhia de insetos é, na maioria dos casos, melhor que a de pessoas. Viver sem sentir é a concretização do vácuo, e os indivíduos hoje vivem exatamente assim, algo que levanta o asco. Cultua-se o café sem cafeína, o hedonismo sem sexo, a aventura sem risco, o gozo sem prazer. Todos satisfazem-se com migalhas, com fantasias parcas, e simplesmente ruminam seus dias, um a um, até que a percepção chegue tarde demais.

Portanto proclamo: somente a solidão salvará o mundo, é a única que desvinculará os grandes dos transparentes. Por mais paradoxal que possa parecer, somente a solidão trará novamente o gosto ao mundo, o calor, a real sensação do viver.

À Todos Vocês


“Essa infeliz gente propunha planos para persuadir os monarcas a escolherem os seus validos em atenção à sabedoria, à capacidade e à virtude deles; para ensinar os ministros a consultarem o bem público; para recompensar o mérito, os grandes talentos e os serviços eminentes; para exercitar os príncipes no conhecimento dos seus verdadeiros interesses, colocando-os nos mesmos fundamentos em que assentam os do povo; escolhendo para os diversos cargos pessoas qualificadas para os exercerem; além de muitas outras quimeras fantásticas e impossíveis, cuja concepção nunca passaria pela cabeça de ninguém; o que me confirmou a velha observação de que não há nada tão extravagante e irracional que algum filósofo não tenha sustentado como verdade”.

Retirei este longo trecho do excelente livro “Viagens de Gulliver”, de Jonathan Swift. O escritor faz uma crítica atemporal ao donos do poder, àquela época em sua maioria monarcas, mas que se encaixa perfeitamente à desiludida realidade política pela qual passamos.

Não distinguo o que mais me abate, ter arremessada em minha face a vilania de Brasília ou constatar que o povo brasileiro nada mais faz senão babar feito um ruminante frente ao absurdos expostos pela imprensa. Minha potência de mudança, antes ardente e irradiante, hoje se compara às brasas de um corpo cremado. Não mais me interessa os rumos da pátria, se é que isso existe, pátria.

Confesso que não exitaria um minuto sequer em tornar-me um ditador, caso tal proposta fosse-me ofertada. Puniria violenta e sadicamente todos os políticos, todos. Pois se uma parcela assalta os cofres do bananal, a outra se omite, ou quando se propõe a ir contra os ladrões é por puro interesse privado. Não existe o espírito público em nenhum dos que frequentam os palácios dos reis degenerados e rainhas prostituídas.

E que o povo não espere compaixão. Não a terá, pelo menos de minha parte. Cansei-me da imbecilidade, mesmo que fruto da carência de educação, o que poderia eximir a patuléia de culpa. A questão é que não confio no homem, animal medíocre que ao vislumbrar a mínima oportunidade de ganho entorpece-se, e assim a moral, a honradez, a virtude e a altivez são jogadas aos porcos.

Que estrupem o país, que matem, que sequestrem a glória prometida, que silenciem os justos e que elevem os estúpidos. Talvez, quando todo o mundo for habitado somente por apedeutas, bufões, patifes, traidores, cínicos, idiotas e toda a sorte de homens baixos, eles consigam destruir a nossa espécie e assim a natureza poderá se ver livre de sua criação deformada.

De agora em diante vou assentar-me e assistir, e sorrir, e comprazer-me com as desgraças de nossa vida. Não me interessa mais nada. A única obra que relegarei aos seres vindouros serão minhas fezes. E se acham meu texto ofensivo, esta é a intenção. Façam o que quiserem, parem de ler, corram atrás da pornografia, vão até a janela espiar a vida alheia, que é a prática preferida da maioria de vocês.

Quando acordarem deste sonho caído, quando conseguirem perceber o que é a vida, quando se derem conta do tamanho e das potencialidades de nossa mente, aí sim juntarei-me com extremo regozijo à nossa prole. Como a cólera me fere os olhos, creio não enxergar este dia nunca. Então, que tudo se exploda em infinitos cacos para que esta miséria nunca mais volte a acometer o mundo.